Há
pouco mais de um século, o intelectual alemão Max Weber proferiu duas
conferências - “A ciência como vocação” (1917) e “A política como vocação”
(1919), ensaios escritos separadamente, que, tomados em conjunto, sugeriram, a
estudiosos das ciências sociais e das humanidades, um ponto nobre de reflexão.
Embora enfrentado por Weber sob impacto dos desafios concretos da Europa
daquela época, o tema dos vínculos entre ciência e política transcendeu aquele
contexto. Nunca deixou de se destacar entre temas clássicos que conservam crucial
atualidade, tanto para iniciados naqueles campos de estudos acadêmicos, como
para governantes e cidadãos de todo o mundo. No contexto de uma pandemia, que
põe todo o mundo entre parênteses, ele se renova e adquire uma relevância
desconcertante.
Tudo bem, o par ciência/política é atual e relevante como tema. Mas qual o sentido de revisitar, especificamente, aquela memorável reflexão de Weber? O mundo não terá mudado bastante – e com ele as ciências e políticas plurais que nele se pratica - de modo tal que o ponto de Weber hoje pertence mais à história das ideias, deixando de ser relevante para a política em ato? Enfim, qualquer comentário sobre aquelas conferências pode parecer uma visita à História e à Filosofia Política talvez um pouco diletante para quem faz um esforço para compreender e opinar sobre a política de hoje e suas conexões atuais com a ciência.
Mantenho,
intuitivamente, a crença na potência e atualidade da luz imanente às duas
reflexões de Weber. Através delas pode-se ver ciência e política como campos
distintos, mas não opostos, porque suas distinções não impedem - e sim sugerem
– convergência e conciliação entre elas. Embora em alguns lugares, como em
nosso país, uma política insana use um senso comum desesperado e infeliz para
tentar desafiar o óbvio, a complementaridade e interdependência forte entre
ciência e política hoje reforçam e conectam o ponto de Weber ao mundo real.
Como
comentei no texto de março, em ambos os trabalhos, Weber chama de vocação a
dedicação a uma profissão. E trata da tensão própria presente na adoção dessa
atitude dedicada. De um lado, aceitação realista de um condicionamento social;
de outro, aposta do sujeito individual numa possibilidade de ação com sentido
de valor.
Prossigo
me repetindo: a condição social é sempre o desencantado mundo moderno, fruto de
um processo de racionalização de meios para o atingimento de fins. Já a
possibilidade que se apresenta à pessoa vocacionada de cultivar valores através
de uma profissão é a de escolher um modo de agir que conecte meio e fim a uma “causa”. A ciência e a política, tal como vistas por
Weber, são (ou ainda podiam ser, há cem anos) espaços de ação por mobilização
de valores, desde que no exercício dessas vocações a pessoa não se rebele contra
o que há de inexorável na racionalização que também afeta as duas atividades.
Agora,
repito coisas que disse em março, mas desdobro-as e vou além. Fato social e ato
individual são facas com dois gumes. A racionalização é esquina entre
emancipação e instrumentalização (é racional buscar direitos ou privilégios). Se
a esquina for dobrada exacerbando instrumentalização, há redução e
amesquinhamento da razão, que virtualmente chega à fronteira com a
perversidade. Já a decisão do ator é, por vezes, tomada em esquinas entre
autonomia (faço livremente o que posso querer) e despotismo (faço o que quero).
Em contextos críticos, como o que vivemos com a pandemia, essas esquinas
viraram mobília em nossos cercados. Quando eticamente animada, a razão gera
decisões pelas quais readquire amplitude e grandeza. Mas corre risco de se
tornar intolerante e dogmática, inspirando atitudes voluntaristas que paradoxalmente
levam ao irracional ou, ao menos, à irrazoabilidade. Por exemplo, ficar em casa
é racional, expor-se ao vírus por escolha não é. Mas acusar de irresponsável
quem é obrigado a sair de casa, sem considerar o contexto dessa pessoa, é usar uma
razão - licença aqui para lembrar Leandro Konder - quase enlouquecida.
Na
ciência e na política persiste um dilema. O sujeito que pratica uma ou outra
vive entre a resignação a uma estabilidade que pode parecer medíocre e
depressiva (apego ideológico a uma verdade em matéria de ciência e a uma
opinião fixa em matéria de política) e uma insegurança ansiosa diante do
imprevisível. Esse dilema, em outras áreas de atividade humana, já foi
resolvido em favor da chamada razão instrumental. Vale o objetivo. Se na
ciência e na política o dilema entre o que pode e o que deve ser ainda existe,
então o ponto de Weber, sobre as vocações, exposto nos textos das duas conferências,
segue relevante. A pessoa que adota ciência
ou política como vocação não escapa da condição de mover-se num fio de
navalha.
Essas
são balizas para ver diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e
da política, sem criar abismo entre elas. Essa atitude permite especular que
não é estranho um diálogo entre essas duas distintas vocações. Um diálogo que se tornou um imperativo
civilizatório.
Weber
salienta, na ciência, a influência “fora do comum” do acaso, que desafia qualquer
valor. Um problema de ação coletiva, por exemplo, no corporativismo das
seleções acadêmicas, que pode premiar arrivistas e medíocres. Seguindo seu
raciocínio crítico podemos até nos espantar com o fato de haver tanto acertos
como erros nessas seleções e não predomínio claro de erros.
O
papel influente do acaso na ciência resultaria também de uma dupla exigência da
carreira: ser cientista e professor. O
critério da “sala cheia” condena a profissão aos ditames do acaso, do ponto de
vista científico. Se de um lado a educação científica é uma “aristocracia
espiritual”, de outro, a tarefa pedagógica mais difícil - e sem a qual o êxito
na missão formativa não é pleno - é saber expor problemas científicos de um
modo suficientemente claro para serem apreendidos por espíritos não preparados,
embora bem dotados. Isto é um dom pessoal que não se confunde com os
conhecimentos detidos pela pessoa. Só por coincidência reúnem-se, numa só
pessoa, as duas aptidões. Por interpretação não autorizada do argumento do
autor pode-se argumentar que, se queremos combinar ensino e pesquisa, resta
apostar em instituições, mais que em compromissos ou talentos de indivíduos. Se
reencarnado em nossa época, o espírito de Ortega Y Gasset certamente acharia
que era feliz e não sabia, na sua encarnação anterior quando lamentava, antes
de Weber, a ascensão dos “homens sem mister”.
Vamos
para a política. É célebre a definição weberiana do Estado moderno. Prestemos
atenção nela: “Instituto político de atividade contínua, cujo quadro
administrativo mantém, com êxito, a pretensão de monopólio legítimo da coação
para a ordem”. Prestemos atenção porque o caráter monopólico do poder estatal (que
é geralmente lembrado) é tão relevante como o de ser um instituto racional e um
empreendimento contínuo, coisa nem sempre valorizada. É a organização
burocrática do estado moderno que controla os governantes que, por sua vez, para
dirigirem o estado, expropriaram, lá atrás, na História, o poder de poderosos
pré-políticos, senhores oligarcas e mandões de todo tipo. Assim, burocratas da
política organizam a política como poder continuo, graças ao caráter compulsório
da organização do Estado.
Importa
tanto a história dessa profissionalização, quanto a de modos economicamente
distintos, mas simultâneos, de praticar a política como vocação. Riqueza, por
exemplo, segue valendo como atributos de políticos profissionais. Mas não é empecilho
à profissionalização específica dos políticos, nem à difusão de novos modos de
acesso de pessoas sem propriedade à liderança política, nem ao aperfeiçoamento
do mercado de recompensas. Os cargos seguem sendo a forma mais moderna de
prebenda e, por isso, a expressão mais ativa da luta dos partidos. Passado o intervalo
totalitário vivido no coração da Europa há 80 anos essas difusões voltam a
revelar os laços mundanos da democracia. Assim como na ciência, cientistas e
professores complementam-se em instituições, para combinar grande e pequena
política é preciso apostar em instituições mais que na qualidade individual, ou
das elites dirigentes.
Voltemos,
com Weber, à ciência. Nas condições “modernas”, a valorização na profissão
científica “propriamente dita” está condicionada à especialização. Somente
trabalhos de especialistas podem almejar valorização própria no mundo da
ciência. Logo, quem não for capaz de usar antolhos e adotar uma exata e
determinada ideia como sua razão de vida e salvação da alma deve ficar longe da
profissão. Também por interpretação não autorizada, é possível dizer que o que
hoje chamamos de multidisciplinaridade só pode se realizar com êxito por
articulação de diferentes especialistas, no âmbito de uma instituição. Para
propiciar êxito ao cientista individual, a multidisciplinaridade precisaria,
ela própria, converter-se em disciplina especializada, reiterando a regra e
renunciando à sua pretensão inovadora original.
Agora,
de volta à política, mais uma vez. Nada mais atual do que a rejeição social da
“política dos cargos”, mesmo da parte de quem não vê relação entre burocracia e
integridade. A história da luta entre políticos destacados e funcionários
administrativos é antiga e é luta por poder. São antigas também e em ziguezague
as coalizões entre funcionários especializados e algum dos poderes diretamente
políticos, na maioria das vezes com o Executivo, em menos vezes com o
Legislativo. Assim se forma a experiência governamental de um país.
Mas
esse campo da experiência está longe de se resumir a tradições e outras balizas
historicamente assentadas. O treinamento
na luta, de que nos fala Weber, é processo contínuo. Em cada contexto valem
como balizas para a ação política tanto fatores (instituições, partidos,
lideranças, teorias e práticas) já considerados pelo conhecimento da história,
longínqua e recente, de cada lugar, como também fatores casuais, ou mesmo
inéditos. Alguns irão se tornar longevas e com isso serão também incorporados a
tradições. Outros vão se esgotar ali, naquele momento. Mas nada impede que
esses efêmeros sejam mais decisivos num contexto crítico.
Vivemos
num país que está passando de uma forma muito severa por essa lição sobre a
efetividade do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “mão invisível do
caos”. Ela, essa mão invisível, é que pode, como não-razão que é, levar uma boa
razão a se deixar enlouquecer pela pretensão de amputá-la. Numa busca dessa,
antecipadamente fracassada, os super-racionais podem julgar inúteis as reflexões
realistas de Weber, que nos lembra de que a distinção entre funcionários
administrativos e funcionários políticos não é essencial. Nela não há o bem,
nem o mal. Ela é uma implicação do treinamento na luta pelo poder.
A
possibilidade, que hoje temos, de recorrer com êxito a funcionários da ciência
como formuladores de políticas públicas é um recurso prudente quando a lógica
da política in natura torna-se refém da face mais negativa do carisma. O ponto
que Weber nos traz induz a celebrar como providencial a dependência recíproca
entre política e ciência. É essa uma das âncoras práticas a partir da qual uma
atitude política prudencial de novo tipo pode se amparar para conter a força
recente que a atitude voluntarista adquiriu em nossas democracias.
A
moderna organização dirigida por políticos profissionais pode retornar – e tem retornado
– a viver nos parlamentos. Poderosas máquinas burocráticas seguem derivando da
democracia e do voto de massas, mas deixam de subordinar parlamentares porque eles
e os políticos profissionais deixaram de ser coisas diferentes. O papel
relevante, político e eleitoral, da liderança democrática volta a mostrar que a
prudência é uma face possível do carisma.
Chegamos
à última estação da viagem a Weber. Trata-se das éticas da ciência e da
política e aqui retorno, uma vez mais, à coluna de março. Nada poderia dizer
sobre isso, nem em março nem agora, que substituísse as palavras do próprio. (...)
toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgir
novas indagações. Portanto, ela pede que seja ‘ultrapassada’ e envelheça. Todo
aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a esse destino”
Por
que ser cientista, se a produção é condenada ao envelhecimento? Weber evoca
Tolstói, para dizer que perguntas sobre os sentidos da morte e da vida passaram
a defrontar-se com a ideia moderna de progresso (ninguém mais morre “pleno de
vida”). A mórbida realidade da nossa hora renova o sentido dessa vocação.
Agora
sobre a ética da política, volto a citar: “A impossibilidade de uma ética
única, extensiva à política, é tão real quanto a falsidade da afirmação de que
a ética da política não possui nexos com qualquer outra ética”. As indicações
para quem pretende vocacionar-se à política dirigem-se a uma determinada ética
da responsabilidade, contraposta à ética das convicções, própria da fé
dogmática. É muito vivo o contraste entre as duas orientações. Enquanto a da
convicção sobre os últimos fins faz quem a segue julgar-se distinto da
estupidez e da mesquinhez do mundo, a da responsabilidade manda dizer: “Eis-me
aqui. Não posso fazer de outro modo”. Daí
ser impossível agora, como em março, ignorar o parágrafo final de “A política
como vocação”:
“A
política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...) somente quem tem a
vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto
de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja
oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a
vocação para a política”
Quem
acha – e também comentei isso na coluna de março - que essa oposição radical
entre duas éticas que separam o político por vocação do apóstolo de uma fé
serve também para distinguir a política da ciência surpreende-se ao não
encontrar esse contraponto em “A ciência como vocação”. Se a ética da responsabilidade compete
claramente ao político por vocação, não se constata, no texto sobre a ciência
uma correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A
ambiguidade ética intrínseca à vida política infiltra-se no agir científico,
impondo também ao cientista uma “negociação com demônios”. Sua ética também precisa
ir além das suas convicções. Talvez não tanto quanto a da política – ou de modo
diferente dela – a ética da ciência contrasta a fé dogmática.
Os
valores perseguidos por uma e outra vocação são distintos. A verdade na ciência
e a legitimidade na política não podem ser alcançadas através de idêntica
conduta. Um político não produz ciência, nem se resolve no professor. Mas a
distinção não impede a cooperação.
O
carisma é a fonte da legitimidade propriamente política e como a política, é
ambíguo. Pode conciliar os valores que defende com as regras que limitam sua
ação e se for assim atua como energia revigoradora. Mas pode também mobilizar
afetos para ameaçar essas próprias regras e nesse caso ser energia destruidora.
Na
política, exortação à intervenção revitalizadora do carisma; na ciência, a
pregação de uma paixão pela rotina. A paixão que leva à dedicação profissional
a uma causa é um elo comum entre as distintas dinâmicas da ciência e da
política no mundo moderno. Elo que permite a vocação ser cumprida com sentido
crítico e inovador. Liame ético que, em vez de estagnar o sujeito em suas
convicções, orienta-o a agir com responsabilidade, fazendo seus valores
pessoais dialogarem com os limites institucionais e culturais da sua respectiva
vocação.
Espero
ter argumentado que quando comparamos, hoje, ciência e política, estamos, mais
ainda do que há cem anos, diante de uma cooperação possível, que é exigência
social da vida prática.
*Cientista político e professor da UFBA
Nenhum comentário:
Postar um comentário