Esta
semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de
cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo
distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana
Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado
visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende
reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os
planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações
seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão.
Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de
resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará
astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de
Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador
da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e
revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na
verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal
de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar
algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders,
bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo
de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade
menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada.
Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle
da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará
parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O
vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão
nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto
isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para
sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se
condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a
morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de
milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e
em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir
uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios
acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian”
um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais
baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para
poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada,
agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou
junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem
garantia de internação, apenas como depósito.
No
último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos
mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou
nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao
contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não
comparar a Índia a qualquer outra nação... Abrigamos 18% da população mundial e
salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”.
Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de
almas errantes, largadas à própria sorte.
No
cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil
elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair
Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também
suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a
ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de
formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o
que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
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