Arreganhos
de uns e outros deixam entrever que existem vários caminhos
Há
períodos em que se necessita ter muita imaginação, ou o senso de dever aguçado,
para cumprir compromissos. Pois bem, olhando em volta, e com minha escassa
imaginação, só resta mesmo o senso do dever para escrever este artigo: o
desânimo em volta acaba por inibir, se não a todos, a muitos de nós,
brasileiros. Será que tal processo só acontece conosco, ou é a pandemia que
tira da maioria – queiramos ou não – a vontade de falar, de escrever? Tenho
dúvidas. Mas o fato é que o desânimo tolhe muito a imaginação: ao redor, mortes
e enfermos; por enquanto há esperança de vencer mais este vírus. Mas escrever
sobre política...
Francamente,
com o governo atordoado e o povo desinteressado, pois o dia a dia consome as
energias e boa parte da população deixa de lado tudo o que existe além do
trabalho e da família, parece até estranho que alguém se disponha a conjecturar
sobre o futuro ou sobre o mundo. Em meu caso, não fosse o “senso de
responsabilidade” (herdado de pais e avós militares), preferiria “flanar”, como
se dizia antigamente, a trabalhar sobre tais temas. Mas não há escolha: ao
trabalho, portanto.
Para ver mais longe e não choramingar sobre o cotidiano local, convém pensar no positivo e no global. Apesar do encolhimento econômico, os que mais sabem parecem ver caminhos e, bem ou mal, a democracia se manteve onde ela resplandece. Nos Estados Unidos há um novo presidente, eleito pela maioria. Já isso é reconfortante.
Até
que ponto a decisão americana nos atinge ou alcança? Por mais que acreditemos
que nosso país é grande (somos mais de 200 milhões) e, afinal, a América Latina
pesa para os Estados Unidos, é melhor não esquecer o ditado, como se diria em
latim: modus in rebus. Ou, mais popularmente, devagar com o andor,
pois o santo é de barro. O mais provável é que, descontando as boas palavras e
as regras de convivência, como é do feitio diplomático, as mudanças no panorama
americano não mudem muita coisa entre nós. E ainda bem.
No
mundo internacional os interesses definem mais a ação do que a boa vontade ou
mesmo os valores (salvo em casos extremos). Saudemos, pois, a mudança de
governo por lá, porque o novo presidente pertence a um partido democrático. Mas
paremos por aqui e cuidemos do nosso quintal.
Não
sei se é correto falar em “nosso” quintal. O mundo está tão integrado
economicamente e as influências cruzadas são tantas que é melhor ser prudente.
De qualquer modo, a eventual insatisfação com o rumo das coisas por aqui não
afeta os interesses maiores de lá, nem os de lá aqui. Se algo puder acontecer,
deverá ser por vontade da maioria daqui mesmo.
Ou
seja, o olhar panorâmico ajuda, mas a decisão dos rumos há de ser local.
Convenhamos: as maiorias se formam e nem sempre seus resultados são os
melhores. Mas quem julga? Na democracia, o eleitorado. E este, se não houver
lideranças que abram seus olhos, pode resultar no que, ao ver de alguns, ou mesmo
de muitos, seja a escolha de um mau caminho. Paciência. Como tenho escrito
nesta página, melhor esperar novas eleições do que tumultuar o processo. À
condição de que se preparem alternativas mais consistentes com nossos valores,
aqueles em que acreditamos.
Escrevi
“nossos valores”. Quais? Há alguns conflitantes e essa é a beleza do jogo
democrático: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza
de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém,
portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativas. É
esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que
há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentarem e dizer o que
propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se
sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.
Que
pelo menos se comprometam a respeitar o jogo democrático; se ocupem de defender
nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir,
qualidade que é indispensável nos regimes presidencialistas. Talvez esta seja a
crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se
a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às
vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira
que ocupa.
Se
dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o
barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o
rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como
foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando
para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de
boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de
vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do
crescimento econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a
oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.
*Sociólogo, foi presidente da República
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