terça-feira, 1 de outubro de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Dívida pública: as garantias da maldição

Valor Econômico

Os catastrofistas de mercado esperneiam para promover a elevação da Selic

Não cessa a barulhenta inconformidade com a relação dívida/PIB. Na visão dos catastrofistas, o risco fiscal está associado a uma trajetória “insustentável” da dívida pública.

Não são poucos os que antecipam um calote na dívida do Estado. Calote? Seria devastador para a riqueza financeira privada, aquela que frequenta os balanços de bancos, fundos, gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão e do dinheirinho.

Em sua trajetória secular, o capitalismo abriu espaço para o surgimento e desenvolvimento de instituições encarregadas de administrar a moeda e os estoques direitos - títulos de dívida e ações - que nascem de seu incessante movimento de criação e apropriação do valor.

No afã de se apropriar da riqueza, as criaturas do mercado estão submetidas à soberania monetária do Estado. O Estado é o senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos de atender à demanda de crédito das gentes privadas. Esse sistema complexo, em sua evolução, engendrou essa forma de criar dinheiro para dar início ao jogo do mercado. Os bancos apresentam-se como os agentes particulares do senhor da riqueza universal. Universal, porque a forma inescapável que deve denominar e mediar todas as negociações, transações e, sobretudo, marcar o valor da riqueza registrada nos balanços.

As relações entre as finanças públicas, gestão monetária e setor financeiro privado não são “externas”, de mero intervencionismo. São orgânicas e constitutivas. Embrenhados no universo do valor e da valorização, os títulos públicos são garantidores da riqueza privada.

Peço licença para recordar as observações de Karl Marx a respeito do papel crucial desempenhado pelo Banco da Inglaterra na gestão da dívida pública.

“Coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia”.

Nos tempos de “normalidade”, as formas socializadas do poder privado permitem diversificar a riqueza de cada grupo, distribuí-la por vários mercados e assegurar o máximo de ganhos patrimoniais, se possível a curto prazo. Os agentes dessas operações são as instituições da finança privada. São elas que procuram antecipar movimentos de preços e definir os instrumentos de hedge e os riscos de contraparte nos mercados financeiros contemporâneos. Nos fundamentos dessa estrutura financeira repousam os ativos “de última instância”, líquidos e seguros, emitidos pelo Estado.

Os títulos de riqueza são emitidos primariamente pelas instituições financeiras bancárias e não bancárias e negociados pelas mesmas senhoras em mercados ditos secundários, em que se formam os preços e as taxas de remuneração dos papéis. No núcleo duro desse processo de formação de preços e rendimentos está o demônio da liquidez. Para ser conciso, qualquer ativo de riqueza, como, por exemplo, uma fábrica ou uma plataforma de entrega de comida, é avaliado pela capacidade de suas traquitanas materiais de gerar um valor monetário. Assim também, e não por acaso, os valores que circulam nos mercados financeiros estão permanentemente ameaçados pela dimensão perversa que habita a alma do demônio da liquidez, sempre pronto a infernizar os que não conseguem assegurar, diante dos demais, a valorização monetária de seus ativos.

Crises de dívida pública estão invariavelmente associadas à tomada de empréstimos em moeda estrangeira

Não só as mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas também a situação patrimonial - devedora ou credora das empresas, bancos e demais instituições - deve estar registrada nos balanços. Os agentes privados do senhor da moeda estão permanentemente obrigados a manejar os riscos de crédito e de liquidez que afetam seu patrimônio líquido, a relação crucial entre ativos e passivos.

Os estudos sobre as relações entre crescimento da dívida privada e da dívida pública ao longo dos ciclos de expansão-contração das economias capitalistas mostram de forma cabal que nas expansões predomina o crescimento do endividamento privado e nas contrações eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam as desconfianças dos mercados, a tigrada corre para os títulos públicos, avaliados como ativos seguros de última instância.

Em minhas peregrinações pelos labirintos da história do capitalismo não encontrei sequer um fiapo de memória denunciando uma crise monetário-financeira provocada pelo endividamento “excessivo” dos governos em moeda nacional. As crises de endividamento público estão invariavelmente associadas à tomada de empréstimos em moeda estrangeira. Essa foi a etiologia da crise fiscal e monetária dos emergentes nos anos 80 do século passado, entre esses o Brasil. A crise deflagrada no início dos anos 80 produziu efeitos devastadores sobre as economias “emergentes” e erodiu a soberania monetária dos países atingidos ao suscitar uma fuga sistemática das moedas nacionais.

Foi esta também a razão da hiperinflação alemã do início dos anos 20 do século passado. Esmagada pelas reparações de guerra que lhe foram impostas pelo Tratado de Versalhes, a economia alemã sucumbiu à impossibilidade de gerar as divisas necessárias para servir o que lhe fora imposto. A fuga sistemática do marco para o dólar e a libra, as moedas-reserva do Gold Exchange Standard, disparou a hiperinflação e a necessidade de resposta hiperinflacionária do Reichsbank e do Tesouro alemão.

A soberania monetária do Estado nacional não é um dom. É um exercício legítimo de poder que os mercados tentam solapar, ignorando que não podem sobreviver sem as relações, por certo conflitivas, com o senhor da moeda. Os catastrofistas de mercado esperneiam para promover a elevação da Selic.

Quem vai pagar a dívida? Consulto o economista francês Michel Aglietta: “A evolução da dívida pública depende de duas variáveis econômicas que não são responsabilidade direta da política fiscal. São a taxa média de juros reais paga na dívida pública e a taxa de crescimento da economia (e o crescimento das receitas fiscais). É da distância entre as tendências dessas duas variáveis que se vai determinar o sucesso ou o fracasso dos esforços de consolidação fiscal”.

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