sábado, 7 de agosto de 2021

Fernando Abrucio*- O futuro do país está nas escolas

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Reabertura das escolas agora deveria ganhar uma relevância simbólica e estratégica bem maior

O principal acontecimento neste início de agosto não ocorre nos espaços de poder de Brasília. A volta às aulas, depois de ano e meio de paralisação parcial ou total do ensino público, é fundamental para reconstruir o país em meio a uma avassaladora e mal gerida pandemia. Não será um processo simples, porque ainda há muitos cuidados a tomar para garantir a saúde de alunos e profissionais da educação. Mas a ampliação da vacinação nos últimos dois meses mudou o cenário. Só que esse retorno deveria ganhar uma relevância simbólica e estratégica ainda maior: fazer da reabertura das escolas um passo inicial para dar o lugar merecido à educação, único passaporte efetivo para um futuro melhor.

A necessidade de garantir o aprendizado e o desenvolvimento integral de alunos que tiveram problemas de acesso à educação remota e para todo o conjunto do alunado que não teve as insubstituíveis aulas presenciais constitui a preocupação educacional número um no momento. O governo Bolsonaro fez uma péssima gestão da pandemia, não só na saúde, como também na educação. Os erros da política sanitária federal fizeram com que o país tivesse uma média de mortes de mais de mil pessoas por dia de janeiro a julho, algo que gerou desconfianças nas famílias e nos professores.

A provisão da educação básica no Brasil é subnacional, mas desde a Constituição de 1988 cabe ao governo federal fazer a coordenação nacional e dar suporte para a execução descentralizada. Porém, o MEC se omitiu e falhou nestas duas tarefas durante a pandemia. Por conseguinte, Estados e municípios agiram de forma completamente fragmentada e, principalmente, conforme suas capacidades prévias de gestão, que são muito heterogêneas. A desigualdade territorial aumentou e os alunos mais pobres do país foram os maiores prejudicados.

Recuperar esse longo período praticamente inativo não será fácil e exigirá diversas ações para motivar os professores e os alunos a superar esse enorme desafio. Grande parte da energia vital do país deveria se concentrar nesta tarefa. Porém, o fato triste é que o Brasil ainda não deu, efetivamente, senso de urgência e de prioridade para a educação. Basta lembrar que a principal votação desta semana na Câmara, que está gerando um enorme conflito entre os Poderes, é sobre o voto impresso. O que essa tentativa de alteração no processo eleitoral poderá mudar a vida da população mais pobre do país, o destino de quase 40 milhões de alunos das escolas públicas, o futuro de nossa nação? Nada, pois tal discussão só serve para tentar garantir a reeleição do presidente Bolsonaro - todo o resto se subordina a esse objetivo.

Diante desse descaso da elite governante atual, a retomada das aulas deveria ensejar uma discussão mais ampla sobre o lugar da política educacional na agenda pública. Neste sentido, cinco dimensões são essenciais. A primeira diz respeito ao sentido mais profundo da educação. Ela é um instrumento de melhoria social de longo prazo para crianças e jovens, que não apenas ensina conteúdos disciplinares (matemática, história etc.) aos alunos, mas também fornece uma série de competências, habilidades e valores essenciais para a vida de cada um e para a coletividade.

A educação é a peça mais importante na formação e desenvolvimento das pessoas e das nações. Sua atuação é multidimensional, atingindo três níveis: o do indivíduo, do cidadão e do profissional. Desse modo, ela ajuda a desenvolver a personalidade dos indivíduos e os socializa, dando-lhes competências para lidar com a vida adulta. Tem ainda um papel central na construção do senso de coletividade, fornecendo aí elementos para a constituição dos alunos como futuros cidadãos. E, por fim, as escolas devem fornecer um conjunto de conhecimentos capazes de fazer a ponte da cognição com talentos e interesses das crianças e jovens em determinados campos de trabalho ou áreas de saber.

A formação escolar de indivíduos, cidadãos e profissionais se modifica ao longo do tempo. As mudanças do século XXI exigem uma atualização das escolas nestes três níveis. Por isso, não se pode reduzir o ensino a um desses aspectos, como muitas vezes ocorre na discussão na opinião pública e entre os políticos. Essa lição é importante para o retorno às aulas presenciais, que deverão lidar com essa multidimensionalidade se quiserem recuperar as perdas de aprendizado e desenvolver integralmente os alunos.

Tendo como base o sentido da educação, a segunda dimensão essencial para dar um salto na política educacional brasileira é melhoria de sua governança, particularmente em seu aspecto federativo. Esse diagnóstico ficou ainda mais claro com a pandemia, quando imperou a descoordenação entre os níveis de governo, principalmente por culpa do governo federal. Por isso, é fundamental criar um Sistema Nacional de Educação, tal como está sendo discutido hoje no Congresso Nacional, que seja capaz de articular União, Estados e municípios por meio do diálogo e da pactuação. Esta estrutura lidaria com o dia a dia das relações intergovernamentais, com situações emergenciais e complexas (“wicked problems”) como a pandemia e, acima de tudo, seria uma arena central para o planejamento de políticas de Estado, e não de governo, garantindo a continuidade básica de programas e definindo as principais linhas das ações de longo prazo.

Se houvesse hoje esse modelo de governança, a volta às aulas nas escolas públicas seria muito mais bem organizada e menos desigual pelo país afora. Mas a estrutura institucional só funciona bem se o elemento humano tem a qualificação, a motivação e a responsabilização adequadas. No caso, a construção de um melhor ambiente profissional na educação constitui a terceira dimensão que deve ser levada em conta para se realizar uma transformação estrutural. Os principais casos de sucesso de políticas educacionais no mundo tiveram como principal instrumento o fortalecimento da formação e das carreiras dos gestores educacionais e, principalmente, dos professores, como eu e Catarina Segatto mostramos no livro “Desafios da Profissão Docente: Experiência internacional e o caso brasileiro”, que será lançado na semana que vem (Editora Moderna).

Só será possível dar um verdadeiro salto na aprendizagem e no desenvolvimento integral dos alunos brasileiros caso seus professores e diretores escolares saibam ensinar e motivar crianças e jovens de um país periférico, desigual e que precisa lidar com a realidade do século XXI. Essa situação será ainda mais complexa nesta volta às aulas, porque os alunos perderam muito mais do que o aprendizado em disciplinas: muitos não se sentem estimulados para retornar à escola e precisam compreender como o ensino pode mudar suas vidas. A única solução para revigorar o interesse pela vida escolar está em docentes preparados e engajados para serem mestres e tutores do alunado.

O problema é que há ainda muitas falhas na formação e na carreira docente no Brasil. Mudanças institucionais devem ser feitas para garantir qualidade e atratividade neste ofício essencial à sociedade. Mas é fundamental ter aqui já um olhar para o futuro, de maneira que é preciso investir em educadores e estimular os jovens brasileiros, de todas as origens sociais, a abraçar a profissão docente ou se tornar uma liderança pública que queira transformar a educação brasileira. O MEC deveria estar fazendo anúncios para atrair mais gente para trabalhar nas escolas. Seria a propaganda mais eficaz para o futuro do país.

Uma quarta dimensão se refere aos métodos de ensino. Talvez seja este o maior desafio da educação no século XXI, pois a forma de ensinar precisa ser mais motivadora e inspiradora para conquistar corações e mentes infantis e juvenis, tanto mais neste momento de pandemia.

Por fim, é essencial aproveitar o momento de volta às aulas para reconstruir e reverenciar a escola como instituição fundamental para o desenvolvimento dos países. Nunca as escolas foram tão maltratadas como agora, com um governo que bate regularmente nos professores e aposta no “homeschooling”. Voltar às aulas, neste sentido, é uma forma de resistência para quem nos quer mandar para o passado, quando queremos um passaporte para o futuro.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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