Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Reabertura das escolas agora deveria ganhar
uma relevância simbólica e estratégica bem maior
O principal acontecimento neste início de
agosto não ocorre nos espaços de poder de Brasília. A volta às aulas, depois de
ano e meio de paralisação parcial ou total do ensino público, é fundamental
para reconstruir o país em meio a uma avassaladora e mal gerida pandemia. Não
será um processo simples, porque ainda há muitos cuidados a tomar para garantir
a saúde de alunos e profissionais da educação. Mas a ampliação da vacinação nos
últimos dois meses mudou o cenário. Só que esse retorno deveria ganhar uma
relevância simbólica e estratégica ainda maior: fazer da reabertura das escolas
um passo inicial para dar o lugar merecido à educação, único passaporte efetivo
para um futuro melhor.
A necessidade de garantir o aprendizado e o desenvolvimento integral de alunos que tiveram problemas de acesso à educação remota e para todo o conjunto do alunado que não teve as insubstituíveis aulas presenciais constitui a preocupação educacional número um no momento. O governo Bolsonaro fez uma péssima gestão da pandemia, não só na saúde, como também na educação. Os erros da política sanitária federal fizeram com que o país tivesse uma média de mortes de mais de mil pessoas por dia de janeiro a julho, algo que gerou desconfianças nas famílias e nos professores.
A provisão da educação básica no Brasil é
subnacional, mas desde a Constituição de 1988 cabe ao governo federal fazer a
coordenação nacional e dar suporte para a execução descentralizada. Porém, o MEC
se omitiu e falhou nestas duas tarefas durante a pandemia. Por conseguinte,
Estados e municípios agiram de forma completamente fragmentada e,
principalmente, conforme suas capacidades prévias de gestão, que são muito
heterogêneas. A desigualdade territorial aumentou e os alunos mais pobres do
país foram os maiores prejudicados.
Recuperar esse longo período praticamente
inativo não será fácil e exigirá diversas ações para motivar os professores e
os alunos a superar esse enorme desafio. Grande parte da energia vital do país
deveria se concentrar nesta tarefa. Porém, o fato triste é que o Brasil ainda
não deu, efetivamente, senso de urgência e de prioridade para a educação. Basta
lembrar que a principal votação desta semana na Câmara, que está gerando um enorme
conflito entre os Poderes, é sobre o voto impresso. O que essa tentativa de
alteração no processo eleitoral poderá mudar a vida da população mais pobre do
país, o destino de quase 40 milhões de alunos das escolas públicas, o futuro de
nossa nação? Nada, pois tal discussão só serve para tentar garantir a reeleição
do presidente Bolsonaro - todo o resto se subordina a esse objetivo.
Diante desse descaso da elite governante
atual, a retomada das aulas deveria ensejar uma discussão mais ampla sobre o
lugar da política educacional na agenda pública. Neste sentido, cinco dimensões
são essenciais. A primeira diz respeito ao sentido mais profundo da educação.
Ela é um instrumento de melhoria social de longo prazo para crianças e jovens,
que não apenas ensina conteúdos disciplinares (matemática, história etc.) aos
alunos, mas também fornece uma série de competências, habilidades e valores
essenciais para a vida de cada um e para a coletividade.
A educação é a peça mais importante na
formação e desenvolvimento das pessoas e das nações. Sua atuação é
multidimensional, atingindo três níveis: o do indivíduo, do cidadão e do
profissional. Desse modo, ela ajuda a desenvolver a personalidade dos
indivíduos e os socializa, dando-lhes competências para lidar com a vida adulta.
Tem ainda um papel central na construção do senso de coletividade, fornecendo
aí elementos para a constituição dos alunos como futuros cidadãos. E, por fim,
as escolas devem fornecer um conjunto de conhecimentos capazes de fazer a ponte
da cognição com talentos e interesses das crianças e jovens em determinados
campos de trabalho ou áreas de saber.
A formação escolar de indivíduos, cidadãos
e profissionais se modifica ao longo do tempo. As mudanças do século XXI exigem
uma atualização das escolas nestes três níveis. Por isso, não se pode reduzir o
ensino a um desses aspectos, como muitas vezes ocorre na discussão na opinião
pública e entre os políticos. Essa lição é importante para o retorno às aulas
presenciais, que deverão lidar com essa multidimensionalidade se quiserem
recuperar as perdas de aprendizado e desenvolver integralmente os alunos.
Tendo como base o sentido da educação, a
segunda dimensão essencial para dar um salto na política educacional brasileira
é melhoria de sua governança, particularmente em seu aspecto federativo. Esse
diagnóstico ficou ainda mais claro com a pandemia, quando imperou a
descoordenação entre os níveis de governo, principalmente por culpa do governo
federal. Por isso, é fundamental criar um Sistema Nacional de Educação, tal
como está sendo discutido hoje no Congresso Nacional, que seja capaz de
articular União, Estados e municípios por meio do diálogo e da pactuação. Esta
estrutura lidaria com o dia a dia das relações intergovernamentais, com
situações emergenciais e complexas (“wicked problems”) como a pandemia e, acima
de tudo, seria uma arena central para o planejamento de políticas de Estado, e
não de governo, garantindo a continuidade básica de programas e definindo as
principais linhas das ações de longo prazo.
Se houvesse hoje esse modelo de governança,
a volta às aulas nas escolas públicas seria muito mais bem organizada e menos
desigual pelo país afora. Mas a estrutura institucional só funciona bem se o
elemento humano tem a qualificação, a motivação e a responsabilização
adequadas. No caso, a construção de um melhor ambiente profissional na educação
constitui a terceira dimensão que deve ser levada em conta para se realizar uma
transformação estrutural. Os principais casos de sucesso de políticas
educacionais no mundo tiveram como principal instrumento o fortalecimento da
formação e das carreiras dos gestores educacionais e, principalmente, dos
professores, como eu e Catarina Segatto mostramos no livro “Desafios da
Profissão Docente: Experiência internacional e o caso brasileiro”, que será
lançado na semana que vem (Editora Moderna).
Só será possível dar um verdadeiro salto na
aprendizagem e no desenvolvimento integral dos alunos brasileiros caso seus
professores e diretores escolares saibam ensinar e motivar crianças e jovens de
um país periférico, desigual e que precisa lidar com a realidade do século XXI.
Essa situação será ainda mais complexa nesta volta às aulas, porque os alunos
perderam muito mais do que o aprendizado em disciplinas: muitos não se sentem
estimulados para retornar à escola e precisam compreender como o ensino pode
mudar suas vidas. A única solução para revigorar o interesse pela vida escolar
está em docentes preparados e engajados para serem mestres e tutores do
alunado.
O problema é que há ainda muitas falhas na
formação e na carreira docente no Brasil. Mudanças institucionais devem ser
feitas para garantir qualidade e atratividade neste ofício essencial à
sociedade. Mas é fundamental ter aqui já um olhar para o futuro, de maneira que
é preciso investir em educadores e estimular os jovens brasileiros, de todas as
origens sociais, a abraçar a profissão docente ou se tornar uma liderança
pública que queira transformar a educação brasileira. O MEC deveria estar
fazendo anúncios para atrair mais gente para trabalhar nas escolas. Seria a
propaganda mais eficaz para o futuro do país.
Uma quarta dimensão se refere aos métodos
de ensino. Talvez seja este o maior desafio da educação no século XXI, pois a
forma de ensinar precisa ser mais motivadora e inspiradora para conquistar
corações e mentes infantis e juvenis, tanto mais neste momento de pandemia.
Por fim, é essencial aproveitar o momento
de volta às aulas para reconstruir e reverenciar a escola como instituição
fundamental para o desenvolvimento dos países. Nunca as escolas foram tão
maltratadas como agora, com um governo que bate regularmente nos professores e
aposta no “homeschooling”. Voltar às aulas, neste sentido, é uma forma de
resistência para quem nos quer mandar para o passado, quando queremos um
passaporte para o futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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