Folha de S. Paulo
Direita populista aproveita-se das
liberdades para difundir mentiras sobre vacinas
O título da coluna reproduz a indagação
proposta por Helio Beltrão, em texto de crítica ao “passe
vacinal” adotado em lugares como Nova York, França e Itália (Folha,
3.ago). O presidente do instituto Mises Brasil inscreve o tema na moldura do
debate —mais que legítimo, crucial— sobre o equilíbrio entre segurança coletiva
e direitos individuais. No caso, porém, da imunização contra a Covid-19, ele
acaba evidenciando a degradação do pensamento liberal sob o impacto da ascensão
da direita populista.
As sociedades livres aceitam um nível elevado de insegurança. Os direitos de expressão, manifestação e reunião, o direito de ir e vir, o habeas corpus e o direito à defesa criam brechas para a operação de grupos violentos e organizações terroristas. Contudo, em nome de um bem intangível maior, tenta-se punir apenas os abusos extremos dos direitos individuais e das liberdades públicas. Não se deveria catalogar o direito à recusa da vacina entre as liberdades fundamentais?
As sociedades livres já se decidiram, há
muito, pela resposta negativa. A
imunização infantil é condição para a matrícula escolar no Brasil e em quase
todas as democracias. Nos EUA, a concessão do green card e a obtenção
de cidadania dependem da vacinação contra várias doenças. Diversos países
exigem o certificado de vacinação da OMS contra doenças como a febre amarela e
a rubéola. Os liberais com todos os parafusos apertados nunca ergueram um
clamor de indignação contra tais exigências. Por que justo agora, no caso da
Covid?
A alegação ritual dos indignados é que as
vacinas anti-Covid não possuem autorização definitiva.
Péssimo álibi, pois isso atesta que o
sistema funciona. Há autorização porque testes clínicos comprovaram a segurança
e a eficácia dos imunizantes. É emergencial porque as vacinas continuam a ser
avaliadas no quadro da sua aplicação em massa, mas devem ser utilizadas
justamente devido à crise sanitária mundial causada pelo coronavírus. Sem a
imunização coletiva, as sociedades sofrerão perdas intoleráveis de vidas, de
riqueza e de empregos.
Vacinas protegem populações, não
indivíduos. Como nenhuma vacina tem eficácia absoluta, os imunizados continuam
a correr riscos. Mas a
imunidade coletiva circunscreve radicalmente a circulação do vírus, oferecendo
elevada proteção a todos. A exigência de “passes vacinais” destina-se a
evitar que a resistência à vacinação de uma minoria expressiva impeça a
sociedade de atingir o limiar da imunidade coletiva.
Sob a pandemia, segurança coletiva e
liberdades individuais não são polos contraditórios. Se, em nome da liberdade
de recusar a vacina, aceitarmos desistir da imunidade coletiva, perderemos
tanto a segurança quanto as liberdades. Já sabemos disso: a extensão da
pandemia impele à adoção de restrições sanitárias parciais ou completas
(lockdowns) que anulam os mais elementares direitos individuais e as liberdades
públicas e econômicas. O liberal que rejeita o “passe
vacinal” é, de fato, um liberticida.
No rastro dos atentados de 11 de setembro
de 2001, os republicanos (liberais, no sentido europeu e brasileiro da palavra)
não hesitaram em restringir direitos e liberdades fundamentais para, em nome da
segurança, combater a emergência posta pelo terror. Por outro lado —surpresa!—
a emergência sanitária global não lhes parece justificativa suficiente nem
mesmo para que se exija a vacinação geral. Seus pudores libertários de ocasião
mal ocultam sua vergonhosa submissão política a lideranças de uma direita
primitiva, autoritária e antiliberal.
Por que obrigar o que é bom? Porque correntes da direita populista aproveitam-se das liberdades que detestam para difundir massivamente mentiras sobre as vacinas, convencendo uma numerosa minoria de que o bom faz mal. Os liberais caudatários de extremistas têm culpa nesse cartório.
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