sábado, 7 de agosto de 2021

Demétrio Magnoli - Por que obrigar o que é bom?

Folha de S. Paulo

Direita populista aproveita-se das liberdades para difundir mentiras sobre vacinas

O título da coluna reproduz a indagação proposta por Helio Beltrão, em texto de crítica ao “passe vacinal” adotado em lugares como Nova York, França e Itália (Folha, 3.ago). O presidente do instituto Mises Brasil inscreve o tema na moldura do debate —mais que legítimo, crucial— sobre o equilíbrio entre segurança coletiva e direitos individuais. No caso, porém, da imunização contra a Covid-19, ele acaba evidenciando a degradação do pensamento liberal sob o impacto da ascensão da direita populista.

As sociedades livres aceitam um nível elevado de insegurança. Os direitos de expressão, manifestação e reunião, o direito de ir e vir, o habeas corpus e o direito à defesa criam brechas para a operação de grupos violentos e organizações terroristas. Contudo, em nome de um bem intangível maior, tenta-se punir apenas os abusos extremos dos direitos individuais e das liberdades públicas. Não se deveria catalogar o direito à recusa da vacina entre as liberdades fundamentais?

As sociedades livres já se decidiram, há muito, pela resposta negativa. A imunização infantil é condição para a matrícula escolar no Brasil e em quase todas as democracias. Nos EUA, a concessão do green card e a obtenção de cidadania dependem da vacinação contra várias doenças. Diversos países exigem o certificado de vacinação da OMS contra doenças como a febre amarela e a rubéola. Os liberais com todos os parafusos apertados nunca ergueram um clamor de indignação contra tais exigências. Por que justo agora, no caso da Covid?

A alegação ritual dos indignados é que as vacinas anti-Covid não possuem autorização definitiva.

Péssimo álibi, pois isso atesta que o sistema funciona. Há autorização porque testes clínicos comprovaram a segurança e a eficácia dos imunizantes. É emergencial porque as vacinas continuam a ser avaliadas no quadro da sua aplicação em massa, mas devem ser utilizadas justamente devido à crise sanitária mundial causada pelo coronavírus. Sem a imunização coletiva, as sociedades sofrerão perdas intoleráveis de vidas, de riqueza e de empregos.

Vacinas protegem populações, não indivíduos. Como nenhuma vacina tem eficácia absoluta, os imunizados continuam a correr riscos. Mas a imunidade coletiva circunscreve radicalmente a circulação do vírus, oferecendo elevada proteção a todos. A exigência de “passes vacinais” destina-se a evitar que a resistência à vacinação de uma minoria expressiva impeça a sociedade de atingir o limiar da imunidade coletiva.

Sob a pandemia, segurança coletiva e liberdades individuais não são polos contraditórios. Se, em nome da liberdade de recusar a vacina, aceitarmos desistir da imunidade coletiva, perderemos tanto a segurança quanto as liberdades. Já sabemos disso: a extensão da pandemia impele à adoção de restrições sanitárias parciais ou completas (lockdowns) que anulam os mais elementares direitos individuais e as liberdades públicas e econômicas. O liberal que rejeita o “passe vacinal” é, de fato, um liberticida.

No rastro dos atentados de 11 de setembro de 2001, os republicanos (liberais, no sentido europeu e brasileiro da palavra) não hesitaram em restringir direitos e liberdades fundamentais para, em nome da segurança, combater a emergência posta pelo terror. Por outro lado —surpresa!— a emergência sanitária global não lhes parece justificativa suficiente nem mesmo para que se exija a vacinação geral. Seus pudores libertários de ocasião mal ocultam sua vergonhosa submissão política a lideranças de uma direita primitiva, autoritária e antiliberal.

Por que obrigar o que é bom? Porque correntes da direita populista aproveitam-se das liberdades que detestam para difundir massivamente mentiras sobre as vacinas, convencendo uma numerosa minoria de que o bom faz mal. Os liberais caudatários de extremistas têm culpa nesse cartório.

Nenhum comentário: