sábado, 7 de agosto de 2021

José de Souza Martins* - Revelações de Borba Gato

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana 

Os envolvidos no ato contra a estátua lutam pelos índios do passado, mas não pelos índios do presente, cuja realidade não conhecem

O ataque recente à estátua de Borba Gato, a fogo de pneus velhos incendiados, trazidos da periferia, em São Paulo, além de ser um gesto extemporâneo e bizarro, é um gesto desconstrutivo e revelador. Os atacantes, por desconhecerem completamente o assunto, fizeram Borba Gato falar e agir 200 anos depois de morto, por meio de sua ação iconoclástica. São cúmplices do Borba Gato falso e fantasioso que se apossou de suas pessoas e de sua consciência ingênua.

Em primeiro lugar, o acontecido documenta o atual estado da ignorância no Brasil, a insuficiente escolaridade, a pobreza do nosso senso comum, a nossa partidarização sem politização, o nosso atraso social, político e cultural. O ato revela o estado deplorável em que o país se encontra, no estado de insuficiências dos que querem e precisam protestar e não conseguem, capturados e instrumentalizados pelo ideologismo redutivo e empobrecedor que nos sobrou da falsa política que historicamente nos domina.

O grupo Revolução Periférica não é inimigo das grandes causas sociais e políticas pendentes no Brasil. Mas nos muitos equívocos e distorções de sua ação, tampouco é amigo. É ingenuamente inimigo da democracia e da obra de edificação de um Brasil pluralista, includente, culto e libertador. Um Brasil sem exclusão social.

O ato praticado é menos revelador sobre o passado brasileiro, invocado e condenado pelos manifestantes, e muito mais revelador sobre a atualidade das classes subalternas que por meio dele supostamente falam no cenário de uma cidade e sua região metropolitana, profundamente alcançadas pela urbanização patológica. Gente que não consegue traduzir num projeto propriamente político suas inquietações sociais e suas frustrações políticas.

Os envolvidos no ato contra a estátua de Borba Gato proclamam-se atores de um movimento de periferia. A periferia urbana de sociedades subdesenvolvidas, como a nossa, não tem comprovada competência para concretizar revoluções sociais e políticas. Só derrotas ou vitórias sempre indiretas. Pode ter inquietações e ressentimentos, que morrem sem as mediações que lhes deem sentido político.

A Revolução Francesa começou num movimento de bairro, em Paris, contra o preço do pão. Mas só deu certo porque outras categorias dele se apossaram, descartando os protagonistas originais.

O sistema conceitual desta revolta periférica de agora não tem nada a ver com a história impugnada, pois acusam o inspirador da obra, Borba Gato, como autor de violações que são conceitos de hoje, da realidade atual, e não de sua própria época. As eras históricas têm seu próprio e significativo sistema de conceitos e de culpas.

Nossa época já derrotou Borba Gato, ao mesmo tempo que consagrou, das suas ações, as que constituem o legado histórico que nos fez o que somos hoje. Ele foi um precursor dos nossos movimentos nativistas, da Revolta dos Emboadas, dos primeiros sinais de uma vontade política de reconhecimento do Brasil como pátria e nação.

Sem Borba Gato, a periferia seria apenas periferia. Sua luta de hoje nem teria existido. A função urbana e política de monumentos como o de Borba Gato é a necessária função desconstrutiva do que é feio, injusto e antissocial.

O movimento Revolução Periférica é filho político daquele Borba Gato que tentaram destruir. Foi ele que incomodou sua consciência e a mobilizou em favor de uma nova e justa ordem social, na diferença e na diversidade. O problema é que o próprio movimento não compreende as reveladoras ocultações e avessos do que fez, não tem consciência das contradições sociais de que nasceu.

É um grupo dotado de falsa consciência social e política, na definição sociológica e filosófica de Georg Lukács, em sua “História e Consciência de Classe”.

Reivindicam uma sociedade sem história. A história social é uma história de conflitos, de desencontros, de busca de direitos e de justiça em situações de injustiça. O certo só é certo à luz do errado que lhe deu sentido. A história é história de contradições e das necessidades sociais e políticas que engendram e das lutas de superação que causam.

Os integrantes do grupo lutam pelos índios do passado, mas não pelos índios do presente, cuja realidade não conhecem. Lutam contra estátuas, mas não lutam contra categorias sociais que devem ser questionadas pelas injustiças sociais da atualidade.

O grupo Revolta Periférica mostrou, no ato, que é contra, mas não mostrou a favor do que é. Não tem consciência própria de uma práxis revolucionária e transformadora. É um grupo politicamente desinformado e alienado, desenraizado, que foi incapaz de propor o sentido histórico de sua rebeldia. Do que fizeram ficou apenas uma estátua pública chamuscada. Só isso.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).

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