O Estado de S. Paulo
O terraplanismo eleitoral defendido pelo
presidente Jair Bolsonaro foi derrotado
Uma dica de filme adequado ao Brasil
atual: A Terra É Plana, documentário disponível no Netflix. O protagonista
é Mark Sargent, uma celebridade entre seus mais de 100 mil seguidores no
YouTube. Em mais de mil vídeos, ele questiona o formato esférico do planeta que
habitamos. Sargent dá entrevistas, participa de podcasts e organiza eventos.
Ele é um guru do terraplanismo, a mãe de todas as teorias conspiratórias – que
nega a física, a astronomia e o bom senso.
Uma dica de filme para cineastas em busca de assunto: que tal fazer um documentário com o título “A Urna É Viciada”? Há algo em comum entre os defensores da terra plana e os que creem que aparecerá a imagem de um sapo barbudo qualquer que seja o número que teclem em 2022. Nos dois casos, os fatos desmentem a lenda. Nunca houve denúncia relevante de fraude eleitoral no Brasil desde que se usam urnas eletrônicas. O sistema é considerado um dos mais seguros do mundo, e é completamente auditável. Mas há quem prefira a lenda aos fatos.
O terraplanismo eleitoral defendido pelo
presidente Jair
Bolsonaro foi derrotado na comissão especial da Câmara por 23
votos a 11. Parlamentares sensatos da direita e da esquerda – do DEM ao Novo,
do PSB ao PSOL – rejeitaram a insanidade, que já havia sido alvo de um
manifesto de empresários. No mesmo dia em que sofria uma de suas maiores
derrotas no Congresso, Bolsonaro repetiu na live semanal suas teorias sobre
urnas viciadas. Pablo Ortellado publicou artigo no Estadão sobre o
caráter conspiratório dessas teorias.
Ortellado, professor na Universidade de São
Paulo, é o entrevistado do minipodcast da semana. Recentemente, ele esteve numa
convenção de terraplanistas. Observou que acreditar em teorias conspiratórias
não tem relação com ideologia – “lá havia terraplanistas lulistas e
bolsonaristas” –, mas existe um padrão comum. Quem crê em uma tem propensão a
aceitar outras.
Este é precisamente o problema das teorias
conspiratórias, segundo a astrofísica Hannalore Gerling Dunsmore, entrevistada
em A Terra É Plana. “Muitos acham que os terraplanistas não incomodam
ninguém, e eu mesma me divirto com os vídeos que eles postam”, diz Dunsmore. “A
negação da ciência e dos fatos, no entanto, está na raiz de crenças mais
perigosas, como duvidar da mudança climática.” O documentário, filmado em 2018
– antes da pandemia, portanto – mostra que o pensamento antivacina era comum
entre os terraplanistas.
O filme mostra como Mark Sargent conseguiu
reunir um grande número de seguidores numa convenção em Raleigh, na Carolina do
Norte. O auge do evento foi a atribuição de um Oscar para o melhor vídeo sobre
terraplanismo. Vale fazer o exercício divertido proposto pela professora
Dunsmore – e incluir na lista as lives sobre a urna viciada que pipocaram após
a manifestação de domingo dia 1.º. Há semelhança no tipo de argumentação e no
humor involuntário.
Defender o voto impresso na era da urna eletrônica é como pedir a volta do orelhão para substituir os smartphones – a piada, em forma de meme, circulou nas redes sociais. Há, no entanto, método na loucura. É possível lucrar com teorias conspiratórias. Alguns, como Mark Sargent, ganham likes, notoriedade e dinheiro. Outros, como Jair Bolsonaro, as usam para eletrizar seguidores incondicionais, conturbar o debate público e desviar o foco de escândalos de corrupção. No caminho, alardeiam golpes e devastam democracias.
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