terça-feira, 22 de julho de 2025

O marxismo, a cultura e as mudanças – Ivan Alves Filho*

A presença do marxismo na construção da cultura contemporânea é um fato que impressiona ainda hoje, revelando a força do Humanismo no mundo, o valor da luta pela Justiça Social e pela Ética nas relações entre as pessoas, e isso em vários pontos do planeta. 

No epicentro deste fenômeno se encontra inegavelmente a III Internacional fundada por Vladimir Lenin e seus companheiros em 1919. Não que a tradição marxista se esgote na experiência iniciada pela Revolução Russa de 1917, evidentemente. Aliás, sequer começou com ela: o Manifesto do Partido Comunista, redigido por Karl Marx e Friedrich Engels data de 1848.  Mas, a Revolução Russa foi o acontecimento mais marcante do século XX. 

Com efeito, as transformações revolucionárias na Rússia Soviética empolgaram o mundo, em particular a intelectualidade.

Não se pode imaginar, por exemplo, a cultura chilena sem a contribuição do historiador Hernán Ramirez Necochea, dos músicos e compositores Violeta Parra e Victor Jara e do poeta Pablo Neruda. O mesmo podemos dizer da cultura francesa sem os poetas Louis Aragon e Paul Éluard, ou os filósofos Henri Lefèvbre e Lucien Sève, o economista Paul Boccara (nascido na Tunísia), o compositor Jean Ferrat e o ator Yves Montand. 

E como se referir à cultura alemã sem os pensadores Walter Benjamin e Ernst Bloch, a romancista Anna Seghers, e o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht? 

Ou a cultura brasileira sem Oscar Niemeyer, Ferreira Gullar, Alberto Passos Guimarães, Graciliano Ramos, Mário Schenberg, Jorge Amado, Astrojildo Pereira, Nelson Werneck Sodré, Leôncio Basbaum, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Caio Prado Júnior, Di Cavalcanti, Candido Portinari, Nelson Pereira dos Santos, Luiz Werneck Vianna e Edison Carneiro? 

Ou entender a cultura do México sem os pintores muralistas David Siqueiros e Diego Rivera, o escritor e crítico Octavio Paz e o sociólogo Roger Bartra, que também se alinharam com os comunistas. 

Em Cuba, desponta a figura do poeta Nicolas Guillén, comunista desde meados da década de 30. No Peru, há o caso emblemático do crítico e jornalista José Carlos Mariátegui e ainda do escritor César Vallejo. O Uruguai nos legou Rodney Arismendi, no plano da formulação e da estratégia política, e Lucía Sala, historiadora. No Haiti, há o escritor Jacques Roumain, fundador do Partido Comunista local.  

A Itália não ficaria atrás: do cineasta Pier Paolo Pasolini ao escritor Italo Calvino e deste aos pensadores e jornalistas Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Pietro Ingrao, todos membros do Partido Comunista. Em Portugal temos José Saramago e António Borges Coelho. Na Espanha, o escritor Jorge Semprún e o pintor Pablo Picasso (com fortes ligações com os comunistas franceses). 

Na Áustria, o psicanalista Wilhem Reich, o historiador Eric Hobsbawm (ainda muito jovem) e o filósofo Ernest Fischer. Na Polônia, o filósofo Adam Schaff e a economista Rosa Luxemburgo. Na Hungria, o psicanalista Sándor Ferenczi e o filósofo György Lukács. Na Holanda, o cineasta documentarista Jores Ivens. 

Na Rússia Soviética, o cineasta Serguei Eisenstein, a escritora Alexandra Kollontai, o pedagogo Anton Makarenko. Na antiga Checoslováquia, os filósofos Karel Kosik e Radovan Richta. Na Turquia, o poeta Nazin Hikmet. E na Grécia, o músico Mikis Theodorakis e o poeta Ritsos. No Egito, o sociólogo Samir Amin. Na Índia, Manabendra Roy. Na antiga Iugoslávia, Milovan Dilas. Na China, o escritor Lu Xun. Na Argentina, o escritor Ernesto Sábato, o editor e tradutor Héctor Agosti e o pedagogo Anibal Ponce. Nos Estados Unidos, o crítico Edmund Wilson e a filósofa Angela Davis. Na África do Sul, Ruth First. De cortar o fôlego. 

A relação de nomes é praticamente interminável. Acredito que seja importantíssimo, se queremos conhecer de fato o Humanismo do nosso tempo, operar um estudo de conjunto sobre a presença ativa, militante, da intelectualidade junto a alguns partidos comunistas do mundo. Conhecer as causas que motivaram seus engajamentos. Penso que o exame da política cultural de cerca de dez ou 15 partidos comunistas já possibilitaria realizar um mapeamento relativamente significativo dessa trajetória tão marcante do papel da cultura como resistência a ditaduras e ao próprio modo de produção capitalista.

Escrevi certa vez que a participação dos intelectuais no processo de liberação política revelava que nem tudo poderia ser reduzido ao conflito classe contra classe, já que esse setor da sociedade apontava para o peso sempre crescente das camadas médias. É o caso de se interrogar, ainda, se o recuo da influência comunista no mundo não se faz acompanhar pelo recuo da atividade cultural criadora em diversos países.

Os temas abordados por esses pensadores e artistas abrem um leque formidável, atingindo áreas fundamentais da ação humana, a saber: teoria da cultura, questão nacional, reflexões a respeito da Democracia, exame do mundo do trabalho, estudos a respeito da alienação, diálogo com novos campos do conhecimento (Psicanálise, Cibernética, Arqueologia, Semiologia, Antropologia e Estética são alguns deles).

E o mais interessante é que os nomes relacionados acima nunca desdenharam a questão do ativismo político, na esteira das propostas formuladas por Karl Marx e como que consubstanciadas nas chamadas Teses sobre Feuerbach, na filosofia da práxis, unindo estudo e prática. Daí eu não ter me referido à contribuição dos marxólogos, sobretudo acadêmicos, ou aqueles que se mantiveram à margem da atividade política organizada, ainda que influenciados em escala variada por diversos aspectos da visão marxista, como o venezuelano Ludovico Silva, o equatoriano Agustin Cuevas e o teórico espanhol radicado no México Adolfo Sánchez Vásquez. 

Assim, eu me concentrei naqueles ativistas intelectuais envolvidos com o marxismo proposto pela III Internacional, a despeito de suas próprias e inúmeras contradições e contramarchas. Da mesma forma, não me voltei para a existência de outras correntes se reivindicando do marxismo, como a tendência trotskista, por exemplo, que ganharia vida sobretudo após a expulsão de Leon Trotsky da União Soviética, em 1929, sem nunca ter alcançado o poder. 

Conhecemos todos nós as vicissitudes da História recente, que demonstrou os limites da construção do chamado socialismo real, seus méritos, mas também seus indiscutíveis impasses. 

Pesou na balança o fato de o socialismo não ter construído uma base material própria, como o capitalismo, por exemplo, que criou a unidade fabril. Por ironia da História, a base material da sociedade sem classes - a automação - estourou no capitalismo. 

O capitalista, ou quem controla os meios de produção, controla também o mercado. E o burocrata, ou quem controla a economia estatizada, controla também o poder. Nem a social democracia aboliu as chamadas relações mercantis capitalistas, vergando-se à ação do grande capital, nem o socialismo real deu margem a que as massas populares controlassem a planificação, alijando-as das esferas de decisão e confundindo estatização com socialização dos meios de produção. A propriedade formal é uma coisa, a informal outra. O que vai definir o seu conteúdo é a gestão. 

Só sairemos dessa lógica quando submetermos tanto o mercado (que não é sinônimo de capitalismo) quanto a planificação (que não é sinônimo de socialismo) ao controle da sociedade. E isso só se faz com Democracia e Autogestão. 

Como o que define um modo de produção é a forma de existência social da força de trabalho, que segue sendo assalariada, e sem o salário não existe capital, a grande questão é saber o que fazer do capital, justamente, nas sociedades contemporâneas. 

Os partidos que ainda se reivindicam das mudanças sociais, operando em conjunto com a intelectualidade renovada, têm muito trabalho pela frente, ao que tudo indica. 

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