Livro resenhado: Gomez, Sílvia. Lady Tempestade. Rio de Janeiro: Cobogó, 2025. 96 págs.
Imagem da capa: Mércia Albuquerque em visita
a Gregório Bezerra, na Casa de Detenção do Recife A fotografia se encontra no
arquivo pessoal desta e não consta a data em que foi feita.
Hoje, Mércia Albuquerque (1934-2003) ainda
não é considerada pelas poucas leitoras e leitores uma das testemunhas mais
importantes das atrocidades da ditadura civil-militar brasileira imposta em
1964 e uma intelectual significativa do século XX.
Em uma madrugada, A. (Atriz) é surpreendida por um telefonema de R. (um homem misterioso) desconhecido, que avisa: um pacote será enviado para o seu endereço. Em três dias, ela recebe os manuscritos do diário de Mércia Albuquerque, advogada pernambucana que defendeu presos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira.
Lady Tempestade, portanto, se manifesta e ganha força ao evidenciar aquilo que Georges Didi-Huberman chamou de “o peso dos tempos”, ao se referir aos constantes desastres ocasionados pelos processos das experiencias dos horrores, bem como, à sensação de que estamos embaixo de um “céu que está pesado, qualquer que seja a maneira pela qual se queira compreender essa expressão”. Na dramaturgia de Sílvia Gomez, o céu ficará pesado quando M. (Mércia Albuquerque), sua personagem fulcral, decide após testemunhar como nos conta na apresentação do livro Samarone Lima o episódio da tortura pública em 2 de abril de 1964, na alvorada da ditadura, quando Gregório Bezerra (1900-1983) foi espancado e humilhado pelos militares pelas ruas do bairro de Casa Forte, no Recife, dar início ao tratamento e escavação de vidas e famílias, promovendo, assim, leituras sobre o sentido de herança e filiação diante dos desaparecimentos dos homens, mulheres, de pais e mães, dos filhos no massacre ocorrido naquele tenebroso período. Tendo as figuras das mulheres e das mães e F. (Filho de A.) como promotoras e promotores da dramaturgia com muitas vozes em colisão com a arqueologia sistêmica das noções de família, de Estado e de pátria.Compreende-se que Sílvia Gomez, ao tratar da
ditadura civil-militar brasileira, coloca em evidência o entrelaçamento de mães
e seu entorno em multiplicidades de paralelismos de linhas que se entrecruzam
dentro desse imenso percurso extremamente contestador de sua dramaturgia, onde
a questão ditatorial se torna explícita. No entanto, é nessa peça que a
dramaturga também entra, de fato, no território da memória histórica com um
enredo de mães e valas comuns e entornos, em busca da justiça. Para além de uma
dramaturgia explicitamente engajada em uma crítica direta ao sistema opressor e
as suas nuvens de gafanhotos – inclusive a da escrita como alertou Walter
Benjamin (1892-1940), que contrariou por décadas todo um senso de república e
democracia, compreendo que Sílvia Gomez, em toda a sua dimensão artística,
traduz o exercício de uma ação política cidadã em sua dramaturgia compartilhada
por Yara de Novaes (contracapa) e Andrea Beltrão (orelha) e toda trupe que
iniciou essa caminhada no Teatro Poeira em janeiro de 2024, como uma espécie de
afirmação de tudo aquilo que não pôde ganhar reconhecimento no período do 38.º
Presidência do Brasil.
Mércia, doravante, poderá ser invocada em
revistas e periódicos intelectuais, e além desse volume, seus livros estarão
disponíveis para serem lecionados em dezenas de aulas todos os anos em
faculdades e universidades, que garantirão assim um fluxo geracional de novos
leitores vinte e poucos anos após sua morte. Mas se esse amplo reconhecimento
acontecer será um fenômeno recente. Esboçar essa tardia ascensão de Mércia da
obscuridade para uma aclamação que tenderá a universalidade a partir desse
primeiro ¼ do século XXI, como a literatura e cinematografia ofereceu a Eunice
Paiva (1929-2018). À medida em que a peça avança, sua emergência na esfera
pública também acontece e ela passará a ocupar um lugar como portadora
representativa dos valores dos direitos humanos e além — como faz a dramaturgia
em tela e o volume que a disponibiliza. Nessa construção projetiva, Mércia pode
e deve ser posicionada contra outras tendências que ressurgiram na cultura
política brasileira no pleito de 2018, como uma percepção de um legado
generalizado da incivilidade e, especialmente, a tendência a sacralizar a
barbárie.
Como se viu recentemente no filme Pecadores (2025)
de Ryan Coogler, ressurgências do passado costumam assombrar os vivos, trazendo
de volta tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem
das sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz,
como na tragédia clássica de Hamlet de Shakespeare (1564-1616), na
belíssima leitura de Jacques Derrida (1930-2004) exposta no livro Espectros
de Marx (Relume Dumará, 1994). Os espectros que nos rondam, quando os
vivos não enterram bem seus mortos como lutou Mércia por quase toda sua vida, e
se investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que
são pantomimas do que eles viveram, também devem encontrar e juntar finalmente
as centelhas da esperança nas poderosas imagens de Marx (1818-1883) de O
18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852).
A leitura de Lady Tempestade mostrará que a opção pela sobriedade de Mércia impulsionara sua reputação de atuar na tempestividade que lhe renderá possivelmente um apoio digno a gigantesca bonança que ela pode oferecer as inúmeras mães e familiares nesse sombrio momento associado à nossa história.
*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho
Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE,
da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.
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