Pietro Ingrao
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil
A autobiografia de Pietro Ingrao, Volevo la luna, detém-se numa fase crucial da sua vida, a morte de Moro e a recusa de ser presidente da Câmara de Deputados pela segunda vez. Daí, do final dos anos 1970, parte o diálogo entre Claudio Carnieri e o dirigente político, recolhido no livro La pratica del dubbio (San Cesario di Lecce: Ed. Manni, 2007), de que a seguir publicamos um trecho.
Pietro Ingrao, nascido em 1915, é figura histórica do velho PCI e referência moral da esquerda italiana. Dois dos seus livros estão disponíveis em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980); Crise e terceira via (Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981) — e constituem ainda hoje, mesmo num contexto inteiramente mudado, pontos de referência para a reflexão sempre atual sobre democracia política e pensamento socialista.
E você, o que pensava? A seu ver, quais eram os limites da linha berlingueriana?
Resumiria com uma palavra: Europa. As deficiências do PCI sobre esta questão eram antigas. Mesmo com os companheiros franceses nosso entendimento era muitas vezes turvado pela obstinada rivalidade, que já surgira — e eu vivera isso pessoalmente — em alguns encontros entre os partidos comunistas realizados em Moscou. Há anos jurávamos fraternidade com aqueles companheiros franceses; em seguida, irrompia sua rivalidade irrefreável.
Já na metade dos anos setenta, Berlinguer tinha buscado ampliar o alinhamento comunista no Ocidente, dando vida a uma aliança tripolar com os “vermelhos” da França e da Espanha, e com seus líderes (Carrillo, Marchais), sob a fórmula do eurocomunismo. O entendimento a três entre comunistas italianos, franceses e espanhóis se efetivara sobretudo por causa do impulso e da autoridade de Enrico, muito apoiado, antes de mais nada, pelos companheiros espanhóis, e por Carrillo mais do que qualquer outro. A duração daquela fase foi breve, até 1977, quando surgiram disputas sobretudo com os franceses e com Marchais.
Mas o tema mais importante que tínhamos diante de nós era o entendimento com os socialdemocratas e com as correntes católicas avançadas, que se mostravam de novo vigorosamente presentes no cenário da Europa. O próprio Berlinguer começou a agir nesta direção, mas não sem algumas hesitações, que só desapareceram no início dos anos oitenta.
Aí veio a tragédia que nos abalou e comoveu a todos. Berlinguer trabalhava freneticamente naqueles anos: no seu esforço de união com os comunistas da Europa e com as correntes inovadoras do país, no qual de modo algum se extinguira o veneno do terrorismo, e também aprofundando sua nova atenção à esquerda européia e ao Terceiro Mundo. O líder estava nas ruas. Participava da luta cotidiana. Viajava pela Europa. Quando se precipitou a desgraça de modo fulminante.
Estava num comício em Pádua. Enquanto falava de um palanquezinho qualquer, foi colhido no meio de uma frase por um ataque fulminante. Desabou repentinamente no chão. Entre a dor e o susto foi levado rapidamente para um hospital. E lá, em Pádua, viveu dias desesperados entre a vida e a morte: sem nunca conseguir pronunciar uma só palavra.
Fui correndo para aquele hospital e vivi sua agonia hora a hora. Pertini [presidente da Itália] também veio e ficou durante dias ao lado do enfermo mudo, que parecia estático a perscrutar um horizonte distante e indizível. E depois o fim. E o choro incontido dos companheiros prostrados sobre o corpo, as invocações sem esperança, com uma dor que se igualava ao amor por ele, que era grande. Por fim, o corpo coberto por véus e flores começou sua dolorosa viagem pela península: com paradas em dezenas de estações, lotadas por pessoas em lágrimas, e, afinal, pelas ruas da capital, onde as vagas de uma multidão jamais vista, congeladas num silêncio incrível, o acompanharam até a praça San Giovanni. Vieram homenagear os restos mortais até mesmo os adversários de sempre: Guido Carli [presidente da Confindustria entre 1976 e 1980], conservador declarado...
E hoje, de tão longe, como vê aquele líder? Como o lê? O que sente?
Antes de tudo, tenho um sentimento de orgulho humano. Orgulho em razão da ligação dele com uma causa: a causa histórica de libertação do humano. E, também, simpatia pela sua singular paixão: vagar solitário pelo mar, quase a interrogar o horizonte. Vagabundo e silencioso. Vê-lo desabar daquele palanque, no qual falava do futuro do continente, pareceu-me uma violência cruel.
Mas você nunca foi “berlingueriano”. Nunca teve uma relação de familiaridade com ele. Por quê?
É difícil dizer. A memória desta pessoa está demasiadamente perto. A imagem impressa na minha mente é a de Berlinguer num barco, que avança perscrutando o horizonte. Um solitário no mar... E, como que misturadas na sua vida, no seu sentimento profundo, uma sede de solidão e ao mesmo tempo uma extraordinária capacidade de comunicação com as pessoas. Talvez porque jamais tenha fingido. Com um limite, talvez: ponderava tudo obsessivamente. Jamais se abandonava (pelo menos assim me parecia) à fantasia. Entre nós dois houve grande estima e recíproco respeito. Familiaridade, não. No fundo, os nossos vocabulários eram diferentes.
Voltemos ao início dos anos 1980, quando você foi trabalhar no CRS [Centro per la riforma dello Stato]. O que você fazia? O que é que pesquisavam? Antes de mais nada, onde se instalaram?
Lembra-se daquela rua em círculo, que, em Roma, leva do fim da via Nazionale até a Praça Veneza? Numa reentrância havia uma pracinha com uma pequena fonte na qual freqüentemente bebíamos. A sede do novo CRS ficava justamente diante daquela fontezinha e do edifício no qual, até 1956, tinha sido a sede de L’Unità: ali — naquela curva da rua — eu trabalhara furiosamente durante aproximadamente dez anos: primeiro como responsável pelo noticiário de Roma, depois como diretor de L’Unità. Naquele mesmo edifício havia um pequeno e excelente estabelecimento, do qual gostávamos muito: a livraria Tombolini. Voltei a vê-la quando passei a trabalhar no CRS, e não na via delle Botteghe Oscure [antiga sede do PCI]. Era muito agradável descer das nossas salas e — depois de tomar o ansiado café — escarafunchar as estantes daquele livreiro inteligente, sempre na expectativa de achar algumas novas pistas interpretativas sobre esse ardente século XX.
Em resumo, era a retomada de um hábito mais antigo. Naquelas incursões pelas estantes, nos anos de juventude, o que atraía sua curiosidade? O que é que você buscava?
Antes de mais nada, buscava textos que se relacionavam com minhas paixões de sempre: cinema, poesia. Mas também clássicos da política ou textos heréticos para os quais estranhamente o fascismo tinha deixado alguma abertura, eventualmente de editoras imprevistas, como, por exemplo, a Corbaccio. Quanto à literatura, buscava não tanto autores italianos, que há tempos estavam nas estantes da minha casa (Ungaretti, Montale, Quasimodo e todo o grupo de Circoli, a grande revista de poesia sediada na Liguria e dirigida por Adriano Grande).
Agora me interessavam autores do século XX europeu ou da literatura americana dos tempos de Roosevelt:
Faulkner, sobretudo, e Steinbech, seus textos mais jovens. Ratos e homens, por exemplo, este livro singular e ambíguo. Mas, acima de todos, para mim estavam aqueles grandes autores que haviam mudado, junto com o vocabulário e o catálogo das palavras, a leitura do humano: Joyce, antes de qualquer outro, e Kafka, o qual nos falava da cidade inesquecível que é Praga. Empalidecia o prazer do fraseado literário, ao qual o cenáculo florentino me arrastara. Operava uma nova língua, que se interrogava sobre o sentido das vicissitudes do homem.
Fonte: Gramsci e o Brasil
A autobiografia de Pietro Ingrao, Volevo la luna, detém-se numa fase crucial da sua vida, a morte de Moro e a recusa de ser presidente da Câmara de Deputados pela segunda vez. Daí, do final dos anos 1970, parte o diálogo entre Claudio Carnieri e o dirigente político, recolhido no livro La pratica del dubbio (San Cesario di Lecce: Ed. Manni, 2007), de que a seguir publicamos um trecho.
Pietro Ingrao, nascido em 1915, é figura histórica do velho PCI e referência moral da esquerda italiana. Dois dos seus livros estão disponíveis em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980); Crise e terceira via (Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981) — e constituem ainda hoje, mesmo num contexto inteiramente mudado, pontos de referência para a reflexão sempre atual sobre democracia política e pensamento socialista.
E você, o que pensava? A seu ver, quais eram os limites da linha berlingueriana?
Resumiria com uma palavra: Europa. As deficiências do PCI sobre esta questão eram antigas. Mesmo com os companheiros franceses nosso entendimento era muitas vezes turvado pela obstinada rivalidade, que já surgira — e eu vivera isso pessoalmente — em alguns encontros entre os partidos comunistas realizados em Moscou. Há anos jurávamos fraternidade com aqueles companheiros franceses; em seguida, irrompia sua rivalidade irrefreável.
Já na metade dos anos setenta, Berlinguer tinha buscado ampliar o alinhamento comunista no Ocidente, dando vida a uma aliança tripolar com os “vermelhos” da França e da Espanha, e com seus líderes (Carrillo, Marchais), sob a fórmula do eurocomunismo. O entendimento a três entre comunistas italianos, franceses e espanhóis se efetivara sobretudo por causa do impulso e da autoridade de Enrico, muito apoiado, antes de mais nada, pelos companheiros espanhóis, e por Carrillo mais do que qualquer outro. A duração daquela fase foi breve, até 1977, quando surgiram disputas sobretudo com os franceses e com Marchais.
Mas o tema mais importante que tínhamos diante de nós era o entendimento com os socialdemocratas e com as correntes católicas avançadas, que se mostravam de novo vigorosamente presentes no cenário da Europa. O próprio Berlinguer começou a agir nesta direção, mas não sem algumas hesitações, que só desapareceram no início dos anos oitenta.
Aí veio a tragédia que nos abalou e comoveu a todos. Berlinguer trabalhava freneticamente naqueles anos: no seu esforço de união com os comunistas da Europa e com as correntes inovadoras do país, no qual de modo algum se extinguira o veneno do terrorismo, e também aprofundando sua nova atenção à esquerda européia e ao Terceiro Mundo. O líder estava nas ruas. Participava da luta cotidiana. Viajava pela Europa. Quando se precipitou a desgraça de modo fulminante.
Estava num comício em Pádua. Enquanto falava de um palanquezinho qualquer, foi colhido no meio de uma frase por um ataque fulminante. Desabou repentinamente no chão. Entre a dor e o susto foi levado rapidamente para um hospital. E lá, em Pádua, viveu dias desesperados entre a vida e a morte: sem nunca conseguir pronunciar uma só palavra.
Fui correndo para aquele hospital e vivi sua agonia hora a hora. Pertini [presidente da Itália] também veio e ficou durante dias ao lado do enfermo mudo, que parecia estático a perscrutar um horizonte distante e indizível. E depois o fim. E o choro incontido dos companheiros prostrados sobre o corpo, as invocações sem esperança, com uma dor que se igualava ao amor por ele, que era grande. Por fim, o corpo coberto por véus e flores começou sua dolorosa viagem pela península: com paradas em dezenas de estações, lotadas por pessoas em lágrimas, e, afinal, pelas ruas da capital, onde as vagas de uma multidão jamais vista, congeladas num silêncio incrível, o acompanharam até a praça San Giovanni. Vieram homenagear os restos mortais até mesmo os adversários de sempre: Guido Carli [presidente da Confindustria entre 1976 e 1980], conservador declarado...
E hoje, de tão longe, como vê aquele líder? Como o lê? O que sente?
Antes de tudo, tenho um sentimento de orgulho humano. Orgulho em razão da ligação dele com uma causa: a causa histórica de libertação do humano. E, também, simpatia pela sua singular paixão: vagar solitário pelo mar, quase a interrogar o horizonte. Vagabundo e silencioso. Vê-lo desabar daquele palanque, no qual falava do futuro do continente, pareceu-me uma violência cruel.
Mas você nunca foi “berlingueriano”. Nunca teve uma relação de familiaridade com ele. Por quê?
É difícil dizer. A memória desta pessoa está demasiadamente perto. A imagem impressa na minha mente é a de Berlinguer num barco, que avança perscrutando o horizonte. Um solitário no mar... E, como que misturadas na sua vida, no seu sentimento profundo, uma sede de solidão e ao mesmo tempo uma extraordinária capacidade de comunicação com as pessoas. Talvez porque jamais tenha fingido. Com um limite, talvez: ponderava tudo obsessivamente. Jamais se abandonava (pelo menos assim me parecia) à fantasia. Entre nós dois houve grande estima e recíproco respeito. Familiaridade, não. No fundo, os nossos vocabulários eram diferentes.
Voltemos ao início dos anos 1980, quando você foi trabalhar no CRS [Centro per la riforma dello Stato]. O que você fazia? O que é que pesquisavam? Antes de mais nada, onde se instalaram?
Lembra-se daquela rua em círculo, que, em Roma, leva do fim da via Nazionale até a Praça Veneza? Numa reentrância havia uma pracinha com uma pequena fonte na qual freqüentemente bebíamos. A sede do novo CRS ficava justamente diante daquela fontezinha e do edifício no qual, até 1956, tinha sido a sede de L’Unità: ali — naquela curva da rua — eu trabalhara furiosamente durante aproximadamente dez anos: primeiro como responsável pelo noticiário de Roma, depois como diretor de L’Unità. Naquele mesmo edifício havia um pequeno e excelente estabelecimento, do qual gostávamos muito: a livraria Tombolini. Voltei a vê-la quando passei a trabalhar no CRS, e não na via delle Botteghe Oscure [antiga sede do PCI]. Era muito agradável descer das nossas salas e — depois de tomar o ansiado café — escarafunchar as estantes daquele livreiro inteligente, sempre na expectativa de achar algumas novas pistas interpretativas sobre esse ardente século XX.
Em resumo, era a retomada de um hábito mais antigo. Naquelas incursões pelas estantes, nos anos de juventude, o que atraía sua curiosidade? O que é que você buscava?
Antes de mais nada, buscava textos que se relacionavam com minhas paixões de sempre: cinema, poesia. Mas também clássicos da política ou textos heréticos para os quais estranhamente o fascismo tinha deixado alguma abertura, eventualmente de editoras imprevistas, como, por exemplo, a Corbaccio. Quanto à literatura, buscava não tanto autores italianos, que há tempos estavam nas estantes da minha casa (Ungaretti, Montale, Quasimodo e todo o grupo de Circoli, a grande revista de poesia sediada na Liguria e dirigida por Adriano Grande).
Agora me interessavam autores do século XX europeu ou da literatura americana dos tempos de Roosevelt:
Faulkner, sobretudo, e Steinbech, seus textos mais jovens. Ratos e homens, por exemplo, este livro singular e ambíguo. Mas, acima de todos, para mim estavam aqueles grandes autores que haviam mudado, junto com o vocabulário e o catálogo das palavras, a leitura do humano: Joyce, antes de qualquer outro, e Kafka, o qual nos falava da cidade inesquecível que é Praga. Empalidecia o prazer do fraseado literário, ao qual o cenáculo florentino me arrastara. Operava uma nova língua, que se interrogava sobre o sentido das vicissitudes do homem.
Vejam o video com Pietro Ingrao:
Um comentário:
El gallego Enrique Líster, muy crítico con Santiago Carrillo
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