Folha de S. Paulo
Não há nada de novo sob o Sol quando Donald
Trump resolve intervir no Brasil sob o pretexto de perseguição a Jair Bolsonaro
Se você, caro leitor, anda impressionado com
a difusão da tese divulgada por bolsonaristas de que vivemos uma ditadura de
toga e de que o Supremo
Tribunal Federal faz parte de uma trama para prejudicar a direita
radical, saiba duas coisas.
Primeiro, essa opinião não decorre de nada
especificamente brasileiro. Trata-se de um discurso que a extrema direita
repete em todo país onde é forte.
Segundo, ela integra uma metanarrativa transnacional já consolidada: a de que haveria uma "maquinação judicial" —ou "‘lawfare’ sistêmico"— orquestrada por elites globalistas ou instituições aparelhadas para neutralizar, criminalizar ou banir forças nacionalistas, populistas e iliberais.
Neste domingo, Matteo Salvini,
vice-primeiro-ministro da Itália e líder da ultradireita, condensou essa
metanarrativa com clareza: "Bolsonaro em
prisão domiciliar, Le Pen condenada,
eleições na Romênia fraudadas, Orbán sob
chantagem e o principal partido alemão praticamente fora da lei. Não me
surpreenderia se, por trás do ataque judicial que atinge todas as forças
indesejadas pela grande finança internacional, houvesse uma maquinação".
A modéstia o impediu de dizer que argumentava
em causa própria. Em 2019, como ministro do Interior, Salvini impediu por dias
que o navio humanitário Open
Arms atracasse em porto italiano. Foi acusado de sequestro de pessoas
e omissão de dever. O Tribunal de
Palermo o absolveu em 2024, mas o Ministério
Público recorreu diretamente à Corte
de Cassação, reabrindo este caso na última sexta-feira, dia 18.
Nessa visão, processos legítimos de controle
institucional são recodificados como perseguições políticas deliberadas. A
retórica dissolve fronteiras entre realidades jurídicas distintas e apresenta
a extrema
direita como vítima universal de uma cruzada global antinacionalista.
Foi assim com Marine Le Pen, condenada no ano
passado por empregar, por anos, assessores fictícios com dinheiro do Parlamento
Europeu. A punição incluiu inabilitação e ressarcimento. Embora o processo
tenha tramitado por quase uma década e seguido os trâmites regulares do
Judiciário francês e europeu, apoiadores de Le Pen alegam que o desfecho foi
politicamente cronometrado para minar sua candidatura presidencial.
Na Alemanha, a decisão do Tribunal
Constitucional de permitir que a AfD, a Alternativa para a Alemanha,
fosse vigiada como ameaça potencial à ordem democrática —por ligações com
ideologias xenófobas e revisionistas— foi outro combustível para a retórica de
perseguição. Lideranças da AfD denunciaram a medida como uma tentativa de
criminalização institucional da oposição formada pela direita.
Na Romênia, após a vitória do
ultraconservador Calin
Georgescu nas eleições do ano passado, a Justiça anulou
o resultado por suspeitas de financiamento ilícito e apologia do fascismo.
Mesmo com a repetição das eleições em maio deste ano —vencidas por um candidato
centrista, sob elogios internacionais—, setores populistas passaram a apontar o
caso como exemplo de um padrão de "perseguição judicial
transnacional" às forças políticas que desafiam o consenso liberal.
Na Hungria, o governo de Viktor
Orbán tornou-se alvo de sanções inéditas por parte da União Europeia,
que decidiu congelar dezenas de bilhões de euros em repasses. A medida foi
apresentada como punição pela adoção de um modelo político iliberal.
Nada de novo sob o Sol, portanto, quando o
presidente Donald Trump,
incapaz de reconhecer a autonomia do Judiciário brasileiro para julgar crimes
contra a democracia, resolve intervir no Brasil sob o pretexto de perseguição
judicial a Bolsonaro. Nem surpreende que essa metanarrativa transnacional seja
adotada pelo bolsonarismo brasileiro.
O que há de novo é que os Judiciários da
França, da Alemanha, da Romênia, do Brasil e da União
Europeia decidiram não sair do caminho da direita radical. Esse fato
tem se constituído no mais formidável obstáculo ao seu projeto de poder, porque
significa que não basta vencer eleições —é preciso andar na linha.
É uma narrativa política e, como toda
história desse tipo, tem propósitos e funções —e depende de crença. A narrativa
da maquinação judicial serve à destruição da credibilidade do Judiciário.
Cumpre também a função estratégica de justificação para os ataques desferidos
contra a Justiça —como este que Trump acaba de lançar contra a Suprema
Corte de outro país. Por conveniência própria, a extrema direita
precisa acreditar —e fazer acreditar— nessa história.
No entanto, quem ainda conserva alguma
lucidez neste país politicamente transtornado tem todo o direito de desconfiar
das intenções desse discurso.
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