Valor Econômico
Episódio da década de 1960 entre Brasil e França deixou como mensagem a reflexão sobre a necessidade de se discutir a fundo o significado da palavra “soberania”
No meio militar, menciona-se a “Guerra da Lagosta” quando se analisa os possíveis desdobramentos da atual turbulência nas relações bilaterais com os Estados Unidos. Aquele episódio ocorreu na década de 1960 entre Brasil e França e, apesar do nome, não culminou com um conflito armado. Mas deixou como mensagem a reflexão sobre a necessidade de se discutir a fundo o significado da palavra “soberania”.
Diferentemente do que ocorreu em outras
eleições, há fortes indícios de que a soberania nacional e a política externa
podem estar entre os temas em debate na campanha de 2026. A questão é se isso
ocorrerá com a profundidade devida. Os céticos responderão que não.
De qualquer maneira, hoje no Palácio do
Planalto a visão é que o tarifaço anunciado pelo presidente Donald Trump
representa a maior investida dos Estados Unidos contra a soberania nacional
desde 1964. No dia 31 de março daquele ano, enquanto militares brasileiros se
preparavam para tomar o poder, ocorria na Casa Branca uma reunião em que se
discutia apoio aéreo e naval para a derrubada do presidente João Goulart.
O contexto era a Guerra Fria. Na próxima
eleição presidencial, por sua vez, pode-se até debater se uma chapa tende a ser
mais alinhada a Washington ou se outra trabalhará por uma concertação do
chamado Sul Global, pendendo para o lado da China. Mas o fato, para os
estrategistas do Planalto, é que a crise com os EUA precisa ser analisada
também como a movimentação da extrema-direita para ter um de seus
representantes no comando do principal país da América Latina.
Exatamente por isso uma aposta dessas
autoridades é que no ano que vem esta discussão possa ser levada para a vida
real das pessoas. Em outras palavras, que o eleitor consiga medir como o
iminente tarifaço anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
será sentido nas regiões produtoras de laranja, café, aviões, petróleo, frutas,
pescados, entre outros bens ou serviços exportados para os EUA. E neste caso,
“medir” significa contabilizar empregos perdidos e a pobreza que isso pode
acarretar.
Na caserna, contudo, diz-se que seria bom
evitar que a politização observada no atual momento (de todos os lados) camufle
fragilidades estruturais que precisam ser enfrentadas.
O descongelamento de parte do Orçamento deste
ano pela equipe econômica nessa terça-feira (22) pode até dar um alívio
momentâneo para as diversas pastas, mas não garante previsibilidade para o
planejamento estratégico de Exército, Marinha e Aeronáutica. Oficiais avaliam
que cai de forma exponencial a probabilidade de aprovação da proposta de emenda
constitucional que garante à defesa nacional um percentual da receita corrente
líquida. E, para piorar, as comissões temáticas do Congresso Nacional têm se transformado
em um ambiente hostil para que integrantes da atual administração defendam
políticas públicas de suas áreas e tentem atrair mais recursos orçamentários.
Deve ser considerada altíssima a possibilidade de o Congresso tentar elevar o
fundo eleitoral do ano que vem, o que pode comprimir ainda mais o orçamento do
Executivo devido às regras fiscais do novo arcabouço.
É aí que vem à memória a história da “Guerra
da Lagosta”, que começou em 1961 e teve um de seus momentos mais tensos em
fevereiro de 1963.
A disputa ocorreu após o declínio da captura
de lagostas nas costas da França e nas de suas colônias na África Ocidental.
Isso levou os armadores do país europeu a procurarem alternativas, o que
colocou o litoral brasileiro e a plataforma continental do país no radar.
Em 1961, o governo brasileiro autorizou que
embarcações francesas fizessem pesquisas em viveiros de lagosta por até 180
dias. Mas constatou logo depois que, na realidade, elas praticavam pesca
predatória ilegal.
Após o apresamento de embarcações francesas
pela Marinha brasileira e uma série de discussões no âmbito diplomático, a
crise escalou e o governo francês decidiu enviar um contratorpedeiro em direção
ao litoral nordestino com o objetivo de garantir a atividade dos pesqueiros de
seu país. Havia a possibilidade de que outras embarcações estivessem de
prontidão, em sua retaguarda.
Estudiosos do episódio anotam que, enquanto
os militares executavam operações de reconhecimento e monitoramento, a cúpula
do governo decidiu fazer declarações à imprensa com teor capaz de levar a um
clamor popular patriótico. No fim das contas, os navios de guerra e os
pesqueiros da França se afastaram da costa brasileira, reduzindo as tensões e o
risco de conflito armado. Mas ficou a conclusão de que uma crise econômica e
diplomática, conduzida pelo governo de forma a angariar apoio popular, sempre
pode acabar deixando a aquisição de equipamentos e a estratégia de defesa em
segundo plano.
Naquele mesmo ano de 1963, em referência ao caso, Moreira da Silva lançou o samba “A lagosta é nossa”. Satirizou os franceses, cantarolando: “Somos de paz, mas não damos cartaz; do que vocês gostam nós gostamos muito mais”. Não há motivo para fazer chacota em relação à atual crise com os Estados Unidos.
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