Correio Braziliense
Bolsonaro e seus aliados ajudaram, Trump
catapultou. Lula teve a firmeza e o vazio de lideranças mundiais fez aflorar um
novo líder planetário
Em 1955, líderes mundiais se reuniram na cidade de Bandung, na Indonésia, para criar um movimento de países não alinhados com a União Soviética (URSS) nem com os Estados Unidos (EUA). Lutavam contra o colonialismo, pela soberania e pelo desenvolvimento nacional. Os líderes reunidos naquela conferência tornaram-se figuras icônicas em todo o mundo. Jawaharlal Nehru, Gamel Abdel Nasser, Chou En-Lai, Sukarno encarnaram o ideal de independência e progresso, simbolizando a possibilidade de que os países descolonizados superassem a pobreza e não fossem submetidos nem à Casa Branca nem ao Kremlin. No mundo inteiro, esses nomes passaram a significar independência e aspiração ao desenvolvimento econômico dos países libertados, livres da tutela das duas potências de então. Setenta anos depois, pode-se dizer que Bandung foi vitoriosa.
Os países da África, Ásia e América Latina
venceram a luta pela descolonização e se industrializaram, urbanizaram e
passaram a ter parcelas de suas populações vivendo nos níveis de vida
equivalentes aos países desenvolvidos. A China transformou-se na segunda maior
potência econômica do planeta e sua estabilidade política e o uso estratégico
dos recursos em prol do desenvolvimento tecnológico e econômico, além das
relações internacionais de forma pragmática e respeitosa, indicam que em breve
será a primeira potência. Enquanto a China oferece aeroportos, portos, rodovias
e ferrovias, os EUA exigem submissão a seus valores culturais e ameaçam com
tarifas e outras armas aos países que não seguem os desejos da Casa Branca,
exigindo, inclusive, quebrar as regras e as leis para dar tratamento
privilegiado aos políticos afinados e subordinados à sua vontade, mesmo se
golpistas.
O desaparecimento da União Soviética, bem
como a derrocada do socialismo, como alternativa social e econômica, somados ao
avanço industrial das ex-colônias, fizeram parecer que não havia necessidade de
movimentos de não alinhados. O mundo parecia caminhar para uma globalização com
progresso econômico para todos, erradicação da pobreza e redução da
desigualdade. Mas o crescimento econômico das últimas décadas não erradicou a
pobreza, concentrou riqueza, induziu a migração em massa e provocou mudanças
climáticas, criou as big techs, que se consideram donas do mundo. Diante dos
limites ao crescimento, a democracia passou a erguer muros em vez de pontes
entre ricos e pobres — entre países e também dentro deles.
É nesse contexto que os Estados Unidos elegem
Donald Trump, cuja postura nacionalista e isolacionista passou a assustar
dirigentes ao redor do mundo, contrariados com as decisões do governo
norte-americano, mas sem lideranças globais com força moral à altura do momento
para enfrentar a volta do colonialismo. Nesse vazio de lideranças, ao enfrentar
a imposição de tarifas para dominar o funcionamento de nosso sistema
judiciário, Lula se projeta como líder mundial, transforma-se na esperança de
pessoas que, ao redor do mundo, estão revoltadas com os arroubos
megalomaníacos, desvairados e irresponsáveis do Trump.
Essa reação do Brasil, independente das
consequências ainda não conhecidas, porque novas armas podem ser usadas —
bloqueio de portos, expulsão de alunos, rompimento de cooperação científica —
está transformando o presidente Lula em um líder mundial. Não vai demorar para
seu nome aparecer em manifestações de jovens ao redor do mundo. Bolsonaro e
seus aliados ajudaram, Trump catapultou. Lula teve a firmeza e o vazio de
lideranças mundiais fez aflorar um novo líder planetário. Mas, para além de
aflorar, os líderes precisam se afirmar: liderar não é apenas enfrentar,
precisa propor rumos.
Em Bandung, os líderes tinham dois
propósitos: vencer o colonialismo político e o subdesenvolvimento econômico.
Uma liderança nova precisa enfrentar Trump, mas também formular com
racionalidade alternativa às grandes crises planetárias: a pobreza global,
inclusive nos EUA, o desequilíbrio ecológico e suas catástrofes, a desigualdade
e o desumanismo dos muros contra imigrantes que buscam sobrevivência, a força
das big techs que se consideram donas do Planeta, a corrupção e o crime
internacionais.
O Brasil não teve líder em Bandung, mas daqui
pode surgir a liderança para um desenvolvimento humanista, em equilíbrio com a
natureza e com justiça social, entendendo que, em 1955, o mundo ainda era a
soma dos países, em 2025, cada país é um pedaço do mundo.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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