Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em matéria dedicada ao plano do governo dos Estados Unidos para o resgate das finanças do país, diz a revista "The Economist", na edição de 25 de setembro, que "a idéia de qualquer resgate é profundamente perturbadora para qualquer capitalista que se dê ao respeito". A sugestão é a de que um capitalista que se preze não deve ter por que ir ao Estado de chapéu na mão - ou, de modo mais amplo, a de que um capitalismo autêntico prescinde do Estado, a não ser como provedor de segurança institucional-legal para as transações privadas.
As proporções da crise financeira agora vivida pela economia americana trazem a indagação de como relacionar essa perspectiva com a idéia do "espírito animal" dos capitalistas - ou, em outra expressão de Keynes, com a tendência do capitalismo à "selvageria". Um Estado limitado a garantir o quadro legal geral é, como tudo indica que teremos de aprender de novo de maneira penosa, compatível com formas de atuação dos capitalistas que nada têm a ver com certo cavalheirismo vitoriano apontado por alguns entre os supostos da economia neoclássica, redundando antes na busca irresponsável e gananciosa de ganho. E o Estado (tal como, para fazer justiça, a própria "The Economist" vem frisando há tempos) tem necessariamente de exercer ativamente a vigilância e a fiscalização que neutralizem as tendências "selvagens". Um capitalismo que se dê ao respeito será aquele em que o Estado contenha a selvageria.
O drama crucial envolvido reside num aspecto que tem sido destacado, especialmente por autores de inspiração marxista, com a fórmula da dependência estrutural do Estado e da sociedade capitalistas em relação aos interesses dos donos do capital. Uma face benigna dessa dependência se tem em que os interesses "animais" dos capitalistas - ao criar empresas, crescimento econômico, oportunidades de emprego - podem apresentar-se legitimamente como correspondendo ao interesse público. A perversão disso, ou a face maligna, tem a ver com o fato de que a assimilação dos interesses dos capitalistas ao interesse público torna-se imperiosa, se certamente não mais legítima, justamente quando a selvageria faz desandar as coisas, como agora, e ameaça a todos com a catástrofe. Nesse momento, em vez da mera assimetria de ganhos em favor dos capitalistas, o que temos é a necessidade - com cheiro de chantagem - de que as perdas sejam socializadas, e o Estado, com os contribuintes a reboque, deve comparecer não como mero regulador, mas como ator decisivo, capaz de proteger os capitalistas (não necessariamente, por certo, cada um deles) das consequências de seu próprio destempero.
Mas a crise de agora traz novidades importantes. Em primeiro lugar, com respeito ao quadro geral da nova dinâmica econômica globalizada e seus correlatos. A intensa financeirização e as criações do "espírito animal" quanto a ela levaram antes a crises várias em países mais ou menos periféricos. Mas, enquanto o jogo corresse bem nos países centrais, era difícil imaginar que a ação coordenada em nível transnacional para contrapor-se às crises viesse de fato a ocorrer com a eficácia necessária: que cada país fizesse o "dever de casa" da prosperidade que a globalização dos ricos prometia. Atingido o coração do sistema econômico mundial, porém, torna-se muito mais realista a expectativa de de que venhamos a ter medidas de impacto eventualmente planetário, até pelas assimetrias econômicas mesmas do mundo globalizado.
Além disso, a expectativa de novidades parece justificar-se também pela maneira específica em que se dá o impacto da crise nos Estados Unidos. Para começar, temos a coincidência de sua manifestação mais dramática com o auge da campanha para a eleição do sucessor de George Bush. Se as coisas podem talvez acomodar-se sem ressonâncias mais negativas quando se trata simplesmente de negociações mais ou menos sigilosas entre agentes poderosos do mercado e altos representantes sobretudo do poder executivo, as ressonâncias são grandemente amplificadas quando o Sr. Mercado tem de ir ao Congreso, como diz também "The Economist", em circunstâncias em que, por outro lado, um presidente pato-manco mercadista e dedicado a cortar impostos dos ricos tem de ir contritamente à televisão tentar atrair a bênção dos eleitores para o que aparece aos olhos de muitos como doação de dinheiro à rica e odiada Wall Street - e doação feita a toque de caixa, antes que o mundo acabe e enquanto o patrimônio modesto de muitos se derrete. Na pergunta dirigida pelo senador John Tester, Democrata de Montana, a Hank Paulson, secretário do Tesouro, e Ben Bernanke, presidente do Fed, relatada por Timothy Egan em blog do New York Times: "Por que temos uma semana para decidir se vamos apropriar 700 bilhões de dólares ou se o sistema financeiro do país vai pelo ralo?"
Diante da incúria evidente a todos os condenados a sofrer as consequências, o que agora é difícil imaginar é que continue tudo na mesma.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Em matéria dedicada ao plano do governo dos Estados Unidos para o resgate das finanças do país, diz a revista "The Economist", na edição de 25 de setembro, que "a idéia de qualquer resgate é profundamente perturbadora para qualquer capitalista que se dê ao respeito". A sugestão é a de que um capitalista que se preze não deve ter por que ir ao Estado de chapéu na mão - ou, de modo mais amplo, a de que um capitalismo autêntico prescinde do Estado, a não ser como provedor de segurança institucional-legal para as transações privadas.
As proporções da crise financeira agora vivida pela economia americana trazem a indagação de como relacionar essa perspectiva com a idéia do "espírito animal" dos capitalistas - ou, em outra expressão de Keynes, com a tendência do capitalismo à "selvageria". Um Estado limitado a garantir o quadro legal geral é, como tudo indica que teremos de aprender de novo de maneira penosa, compatível com formas de atuação dos capitalistas que nada têm a ver com certo cavalheirismo vitoriano apontado por alguns entre os supostos da economia neoclássica, redundando antes na busca irresponsável e gananciosa de ganho. E o Estado (tal como, para fazer justiça, a própria "The Economist" vem frisando há tempos) tem necessariamente de exercer ativamente a vigilância e a fiscalização que neutralizem as tendências "selvagens". Um capitalismo que se dê ao respeito será aquele em que o Estado contenha a selvageria.
O drama crucial envolvido reside num aspecto que tem sido destacado, especialmente por autores de inspiração marxista, com a fórmula da dependência estrutural do Estado e da sociedade capitalistas em relação aos interesses dos donos do capital. Uma face benigna dessa dependência se tem em que os interesses "animais" dos capitalistas - ao criar empresas, crescimento econômico, oportunidades de emprego - podem apresentar-se legitimamente como correspondendo ao interesse público. A perversão disso, ou a face maligna, tem a ver com o fato de que a assimilação dos interesses dos capitalistas ao interesse público torna-se imperiosa, se certamente não mais legítima, justamente quando a selvageria faz desandar as coisas, como agora, e ameaça a todos com a catástrofe. Nesse momento, em vez da mera assimetria de ganhos em favor dos capitalistas, o que temos é a necessidade - com cheiro de chantagem - de que as perdas sejam socializadas, e o Estado, com os contribuintes a reboque, deve comparecer não como mero regulador, mas como ator decisivo, capaz de proteger os capitalistas (não necessariamente, por certo, cada um deles) das consequências de seu próprio destempero.
Mas a crise de agora traz novidades importantes. Em primeiro lugar, com respeito ao quadro geral da nova dinâmica econômica globalizada e seus correlatos. A intensa financeirização e as criações do "espírito animal" quanto a ela levaram antes a crises várias em países mais ou menos periféricos. Mas, enquanto o jogo corresse bem nos países centrais, era difícil imaginar que a ação coordenada em nível transnacional para contrapor-se às crises viesse de fato a ocorrer com a eficácia necessária: que cada país fizesse o "dever de casa" da prosperidade que a globalização dos ricos prometia. Atingido o coração do sistema econômico mundial, porém, torna-se muito mais realista a expectativa de de que venhamos a ter medidas de impacto eventualmente planetário, até pelas assimetrias econômicas mesmas do mundo globalizado.
Além disso, a expectativa de novidades parece justificar-se também pela maneira específica em que se dá o impacto da crise nos Estados Unidos. Para começar, temos a coincidência de sua manifestação mais dramática com o auge da campanha para a eleição do sucessor de George Bush. Se as coisas podem talvez acomodar-se sem ressonâncias mais negativas quando se trata simplesmente de negociações mais ou menos sigilosas entre agentes poderosos do mercado e altos representantes sobretudo do poder executivo, as ressonâncias são grandemente amplificadas quando o Sr. Mercado tem de ir ao Congreso, como diz também "The Economist", em circunstâncias em que, por outro lado, um presidente pato-manco mercadista e dedicado a cortar impostos dos ricos tem de ir contritamente à televisão tentar atrair a bênção dos eleitores para o que aparece aos olhos de muitos como doação de dinheiro à rica e odiada Wall Street - e doação feita a toque de caixa, antes que o mundo acabe e enquanto o patrimônio modesto de muitos se derrete. Na pergunta dirigida pelo senador John Tester, Democrata de Montana, a Hank Paulson, secretário do Tesouro, e Ben Bernanke, presidente do Fed, relatada por Timothy Egan em blog do New York Times: "Por que temos uma semana para decidir se vamos apropriar 700 bilhões de dólares ou se o sistema financeiro do país vai pelo ralo?"
Diante da incúria evidente a todos os condenados a sofrer as consequências, o que agora é difícil imaginar é que continue tudo na mesma.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário