Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A Região Sudeste exerce historicamente um contrapeso ideológico em relação ao restante da Federação, em especial ao Nordeste. Nas vésperas da Revolução de 1964, o apelo por políticas populares, se movia ativistas do Sudeste, provocava verdadeira efervescência no Nordeste, em especial em Pernambuco, onde um governador de esquerda, Miguel Arraes, e um movimento atuante pela reforma agrária, faziam o sonho da esquerda nacional. A reação ao governo João Goulart veio, em especial, do Rio, onde Carlos Lacerda não era apenas o governador, mas a voz da UDN que conspirava; em Minas, onde Magalhães Pinto, também da UDN, conspirava baixinho; e em São Paulo, onde uma elite conservadora mais tarde ajudaria inclusive a criar e manter o "piloto" de aparelho de tortura que unificava as forças militares e policiais, a Operação Bandeirantes (Oban), depois denominada DOI-Codi. É certo, existiam nos Estados mais ricos da Federação uma oposição popular e democrática e grupos que mais tarde rumaram para a luta armada, mas é inegável que o movimento conservador que resultou num golpe de Estado era hegemônico, pelo menos nos primeiros anos de ditadura militar.
No período de desgaste da ditadura, quando o governo militar já havia esmagado a oposição no Nordeste e as tentativas da esquerda armada de organização no Norte do país, e as famílias que tradicionalmente dominavam a política nordestina tornaram novamente hegemônica a política de compadrio e de clientela, foi o Sudeste a primeira região a registrar a disposição civil à resistência e à luta pacífica pela redemocratização do país. O MDB ganhou musculatura no Sudeste, antes de tornar-se um instrumento nacional de mudança pelo voto. Em 1974, quando apenas dois partidos eram permitidos pelo regime - o MDB, de oposição, e a Arena situacionista -, o MDB conseguiu 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, chegando a 30% da bancada; e fez 44% da Câmara dos Deputados. Em 1977 o general-presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso e editou o Pacote de Abril, para garantir maioria situacionista no Congresso e no Colégio Eleitoral que escolheria seu sucessor no ano seguinte, e era composto por membros do Congresso Nacional e delegados das Assembléias Legislativas. Com uma penada, o general mudou a composição da Câmara, dando maior peso aos Estados do Nordeste e do Norte, teoricamente sob controle dos "coronéis" donos de votos e partidários do regime. Em 1978, graças ao pacote de Geisel, a Arena manteve a maioria no Congresso, mesmo tendo obtido 13,1 milhões de votos, contra 17,4 milhões de votos dados ao MDB.
Depois da redemocratização, houve um processo lento de transferência de votos dos partidos mais conservadores para os mais afinados à esquerda no Nordeste. Lideranças nordestinas da antiga Arena, ou do MDB conservador, que foram se abrigar no PFL depois da redemocratização, mantiveram suas posições naquela região como partidos da base parlamentar do governo central, exceto pelo curto período do governo Itamar Franco (PMDB), até o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. O PFL tinha, em 1988, seu primeiro ano de existência legal, 1.058 prefeitos em todo o país, decresceu um pouco sua participação municipal nas eleições seguintes, de 1992 e 1996, mas recobrou musculatura em 2000, quando fez 1.026 prefeitos. Na oposição após a eleição de Lula, só fez cair: elegeu 792 prefeitos em 2004 e caiu para 494 no primeiro turno das eleições desse ano. O ex-PFL, hoje Democratas, quase foi varrido da sua base tradicional, o Nordeste: teve uma queda de 63% no número de prefeituras daquela região, de 2004 para 2008. Em compensação, três partidos à esquerda do espectro político cresceram assombrosamente em território nordestino: PT (105%), PDT (126%) e PSB (91%). No Sudeste, o DEM caiu 11% - muito menos do que caiu no Nordeste -, mas, mesmo em declínio numérico, conseguir acesso aos eleitores paulistas numa eleição para a prefeitura da capital é um feito. Gilberto Kassab tem grandes chances de vencer a eleição contra o PT no segundo turno, mas apenas tem essa oportunidade porque, desde 2006, São Paulo, Estado e capital, estão no meio de uma onda conservadora que se formou quase simultânea à queda do voto conservador no Nordeste. E isso ocorre num período em que o DEM mais manteve afinidade ideológica com o PSDB, que guinou para a direita no Estado e manteve, nessa posição, uma quase hegemonia nos últimos anos. A Região Sudeste foi a única em que o PSDB aumentou o número de prefeitos - em 8%; em todas as demais regiões o partido sofreu queda.
Dos números das eleições, pode-se concluir que a tendência do Nordeste à esquerda é uma inexorável atração da região pelo governismo - e o PT, afinal, está no governo federal; e que os partidos brasileiros, pela sua fraca organicidade, tendem a murchar quando na oposição. Isso parece ser um senso comum. O que existe de diferente no cenário, no entanto, é que desde 2006, com a radicalização que se seguiu ao escândalo do mensalão, as posições políticas dos partidos ficaram muito marcadas e eles passaram a representar com mais clareza estratos sociais. Assim como em 1964, o "ser governista" não explica, por si só, a virada política do Nordeste, nem o apelo maior dos setores conservadores na política do Sudeste.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A Região Sudeste exerce historicamente um contrapeso ideológico em relação ao restante da Federação, em especial ao Nordeste. Nas vésperas da Revolução de 1964, o apelo por políticas populares, se movia ativistas do Sudeste, provocava verdadeira efervescência no Nordeste, em especial em Pernambuco, onde um governador de esquerda, Miguel Arraes, e um movimento atuante pela reforma agrária, faziam o sonho da esquerda nacional. A reação ao governo João Goulart veio, em especial, do Rio, onde Carlos Lacerda não era apenas o governador, mas a voz da UDN que conspirava; em Minas, onde Magalhães Pinto, também da UDN, conspirava baixinho; e em São Paulo, onde uma elite conservadora mais tarde ajudaria inclusive a criar e manter o "piloto" de aparelho de tortura que unificava as forças militares e policiais, a Operação Bandeirantes (Oban), depois denominada DOI-Codi. É certo, existiam nos Estados mais ricos da Federação uma oposição popular e democrática e grupos que mais tarde rumaram para a luta armada, mas é inegável que o movimento conservador que resultou num golpe de Estado era hegemônico, pelo menos nos primeiros anos de ditadura militar.
No período de desgaste da ditadura, quando o governo militar já havia esmagado a oposição no Nordeste e as tentativas da esquerda armada de organização no Norte do país, e as famílias que tradicionalmente dominavam a política nordestina tornaram novamente hegemônica a política de compadrio e de clientela, foi o Sudeste a primeira região a registrar a disposição civil à resistência e à luta pacífica pela redemocratização do país. O MDB ganhou musculatura no Sudeste, antes de tornar-se um instrumento nacional de mudança pelo voto. Em 1974, quando apenas dois partidos eram permitidos pelo regime - o MDB, de oposição, e a Arena situacionista -, o MDB conseguiu 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, chegando a 30% da bancada; e fez 44% da Câmara dos Deputados. Em 1977 o general-presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso e editou o Pacote de Abril, para garantir maioria situacionista no Congresso e no Colégio Eleitoral que escolheria seu sucessor no ano seguinte, e era composto por membros do Congresso Nacional e delegados das Assembléias Legislativas. Com uma penada, o general mudou a composição da Câmara, dando maior peso aos Estados do Nordeste e do Norte, teoricamente sob controle dos "coronéis" donos de votos e partidários do regime. Em 1978, graças ao pacote de Geisel, a Arena manteve a maioria no Congresso, mesmo tendo obtido 13,1 milhões de votos, contra 17,4 milhões de votos dados ao MDB.
Depois da redemocratização, houve um processo lento de transferência de votos dos partidos mais conservadores para os mais afinados à esquerda no Nordeste. Lideranças nordestinas da antiga Arena, ou do MDB conservador, que foram se abrigar no PFL depois da redemocratização, mantiveram suas posições naquela região como partidos da base parlamentar do governo central, exceto pelo curto período do governo Itamar Franco (PMDB), até o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. O PFL tinha, em 1988, seu primeiro ano de existência legal, 1.058 prefeitos em todo o país, decresceu um pouco sua participação municipal nas eleições seguintes, de 1992 e 1996, mas recobrou musculatura em 2000, quando fez 1.026 prefeitos. Na oposição após a eleição de Lula, só fez cair: elegeu 792 prefeitos em 2004 e caiu para 494 no primeiro turno das eleições desse ano. O ex-PFL, hoje Democratas, quase foi varrido da sua base tradicional, o Nordeste: teve uma queda de 63% no número de prefeituras daquela região, de 2004 para 2008. Em compensação, três partidos à esquerda do espectro político cresceram assombrosamente em território nordestino: PT (105%), PDT (126%) e PSB (91%). No Sudeste, o DEM caiu 11% - muito menos do que caiu no Nordeste -, mas, mesmo em declínio numérico, conseguir acesso aos eleitores paulistas numa eleição para a prefeitura da capital é um feito. Gilberto Kassab tem grandes chances de vencer a eleição contra o PT no segundo turno, mas apenas tem essa oportunidade porque, desde 2006, São Paulo, Estado e capital, estão no meio de uma onda conservadora que se formou quase simultânea à queda do voto conservador no Nordeste. E isso ocorre num período em que o DEM mais manteve afinidade ideológica com o PSDB, que guinou para a direita no Estado e manteve, nessa posição, uma quase hegemonia nos últimos anos. A Região Sudeste foi a única em que o PSDB aumentou o número de prefeitos - em 8%; em todas as demais regiões o partido sofreu queda.
Dos números das eleições, pode-se concluir que a tendência do Nordeste à esquerda é uma inexorável atração da região pelo governismo - e o PT, afinal, está no governo federal; e que os partidos brasileiros, pela sua fraca organicidade, tendem a murchar quando na oposição. Isso parece ser um senso comum. O que existe de diferente no cenário, no entanto, é que desde 2006, com a radicalização que se seguiu ao escândalo do mensalão, as posições políticas dos partidos ficaram muito marcadas e eles passaram a representar com mais clareza estratos sociais. Assim como em 1964, o "ser governista" não explica, por si só, a virada política do Nordeste, nem o apelo maior dos setores conservadores na política do Sudeste.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário