Mercio Pereira
Antropólogo e ex-Presidente da FUNAI
19 – É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
Esta 19ª ressalva foi indicada ao final da votação sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo ministro-presidente do STF, Gilmar Mendes. Trata-se de incluir os estados e os municípios em Grupos de Trabalho portariados pela Funai, GTs que são formados pelo menos por um antropólogo, um ambientalista e um topógrafo, para reconhecer uma terra indígena, avaliar os seus limites e produzir o Estudo de Identificação para subsidiar a decisão do presidente da Funai sobre a legitimidade ou não de publicar o reconhecimento de tal terra.
Até agora a Funai era soberana em produzir esse estudo. Mesmo contando com pessoal do IBAMA ou do INCRA para compor o GT, a decisão ficava sempre nas mãos do antropólogo, que chefiava o GT.
A inclusão dessa nova ressalva traz novas consequências. A principal, por óbvio, é que os estados e municípios não têm o mínimo interesse em demarcar terras indígenas. Ao longo da história brasileira esses "entes federativos" têm sido os algozes dos índios, por representarem os interesses das elites locais, especificamente dos donos das terras. No século XIX, os governadores de diversos estados simplesmente extinguiram terras indígenas alegando que não havia mais índios em seus estados. E as terras foram distribuídas pelos apaniguados políticos.
Consequentemente é de se esperar que o processo de reconhecimento e de demarcação de terras indígenas vai ficar ainda mais emperrado do que já estava, piorado também pelas ressalvas 20 e 17 já discutidas nesse Blog.
Em termos gerais, essa ressalva significa aquilo que no indigenismo rondoniano brasileiro chama-se de "estadualização" da questão indígena. Lembremos que a criação do Serviço de Proteção aos Índios -- SPI -- em 1910, por Rondon, significou puxar a questão indígena, em toda sua integridade, para o Governo Federal. Com isso, deixou os estados com menor capacidade de definir a distribuição de terras para terceiros. Mesmo assim, durante as primeiras décadas após 1910, foi duríssimo para o SPI demarcar terras porque elas estavam na alçada dos estados. Só depois de 1935, com um decreto presidencial baseado na Constituição de 1934, é que o SPI adquiriu alguma legalidade para definir as terras indígenas e seus limites. Ainda assim, não havia uma lei específica para tanto e durante todo seu tempo o SPI lutou contra os estados para demarcar terras indígenas. Só com a ditadura militar, ironicamente, e por causa do Estatuto do Índio, decreto-lei de 1973, é que a Funai, o Governo Federal, ganhou a soberania de demarcar terras.
A estadualização como intenção política é, portanto, uma atitude pré-rondoniana, efetivamente um retorno ao século XIX.
O problema é que esse processo já vinha ocorrendo em diversos pontos da política indigenista da atualidade. A estadualização da educação indígena, por exemplo, é o caso mais incisivo. Essa estadualização foi projetada no governo FHC, seguindo uma interpretação da Lei da Educação Darcy Ribeiro (na minha opinião, interpretação tendenciosa) e foi intensificada no governo Lula. Quando era presidente da Funai discuti muito no MEC, e especialmente com o ministro Haddad, para que o Governo Federal assumisse a educação indígena, tal como assume as Escolas Federais. Mas o ministro Haddad não tem sido sensível aos meus argumentos.
Outro aspecto de estadualização da política indigenista é a do atendimento à saúde indígena. Com a política de saúde da Funasa, os recursos são entregues às Ongs e/ou aos estados e municípios, que fazem a sua própria versão de política indigenista. Os índios têm sofrido muito com o atendimento de saúde que vem dos municípios e das Ongs.
Mais recentemente, diversos estados da União têm criado secretarias ou instituições dentro do governo para assistir aos povos indígenas de seus estados. Blairo Maggi, do Mato Grosso, é um deles; Eduardo Braga, do Amazonas, outro; Binho Marques, do Acre; Requião, do Paraná, também; agora, Ana Júlia Carepa, do Pará.
Esses estados se colocam como substitutas da Funai, considerando que a Funai não está cumprindo suas obrigações. È evidente que mais do que boas, más intenções estão por trás disso tudo.
Por fim, as Ongs neoliberais do indigenismo brasileiro, especialmente o ISA, têm sido as mais ferrenhas críticas da Funai e têm apoiado essas iniciativas de estadualização. Por sua visão neoliberal do mundo, elas condenam o governo federal, a tradição rondoniana da política indigenista e acreditam que seriam capazes de assumir a questão indígena brasileira, no que são apoiadas pelas Ongs internacionais. Por sua vez, a estadualização de aspectos da questão indígena dilui as verbas orçamentárias da União e assim ficam menos contabilizáveis.
A estadualização vai desembocar em intensificação do assédio dos estados e municípios sobre os povos indígenas. A vida dos índios vai ficar mais difícil ainda.
Antropólogo e ex-Presidente da FUNAI
19 – É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
Esta 19ª ressalva foi indicada ao final da votação sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo ministro-presidente do STF, Gilmar Mendes. Trata-se de incluir os estados e os municípios em Grupos de Trabalho portariados pela Funai, GTs que são formados pelo menos por um antropólogo, um ambientalista e um topógrafo, para reconhecer uma terra indígena, avaliar os seus limites e produzir o Estudo de Identificação para subsidiar a decisão do presidente da Funai sobre a legitimidade ou não de publicar o reconhecimento de tal terra.
Até agora a Funai era soberana em produzir esse estudo. Mesmo contando com pessoal do IBAMA ou do INCRA para compor o GT, a decisão ficava sempre nas mãos do antropólogo, que chefiava o GT.
A inclusão dessa nova ressalva traz novas consequências. A principal, por óbvio, é que os estados e municípios não têm o mínimo interesse em demarcar terras indígenas. Ao longo da história brasileira esses "entes federativos" têm sido os algozes dos índios, por representarem os interesses das elites locais, especificamente dos donos das terras. No século XIX, os governadores de diversos estados simplesmente extinguiram terras indígenas alegando que não havia mais índios em seus estados. E as terras foram distribuídas pelos apaniguados políticos.
Consequentemente é de se esperar que o processo de reconhecimento e de demarcação de terras indígenas vai ficar ainda mais emperrado do que já estava, piorado também pelas ressalvas 20 e 17 já discutidas nesse Blog.
Em termos gerais, essa ressalva significa aquilo que no indigenismo rondoniano brasileiro chama-se de "estadualização" da questão indígena. Lembremos que a criação do Serviço de Proteção aos Índios -- SPI -- em 1910, por Rondon, significou puxar a questão indígena, em toda sua integridade, para o Governo Federal. Com isso, deixou os estados com menor capacidade de definir a distribuição de terras para terceiros. Mesmo assim, durante as primeiras décadas após 1910, foi duríssimo para o SPI demarcar terras porque elas estavam na alçada dos estados. Só depois de 1935, com um decreto presidencial baseado na Constituição de 1934, é que o SPI adquiriu alguma legalidade para definir as terras indígenas e seus limites. Ainda assim, não havia uma lei específica para tanto e durante todo seu tempo o SPI lutou contra os estados para demarcar terras indígenas. Só com a ditadura militar, ironicamente, e por causa do Estatuto do Índio, decreto-lei de 1973, é que a Funai, o Governo Federal, ganhou a soberania de demarcar terras.
A estadualização como intenção política é, portanto, uma atitude pré-rondoniana, efetivamente um retorno ao século XIX.
O problema é que esse processo já vinha ocorrendo em diversos pontos da política indigenista da atualidade. A estadualização da educação indígena, por exemplo, é o caso mais incisivo. Essa estadualização foi projetada no governo FHC, seguindo uma interpretação da Lei da Educação Darcy Ribeiro (na minha opinião, interpretação tendenciosa) e foi intensificada no governo Lula. Quando era presidente da Funai discuti muito no MEC, e especialmente com o ministro Haddad, para que o Governo Federal assumisse a educação indígena, tal como assume as Escolas Federais. Mas o ministro Haddad não tem sido sensível aos meus argumentos.
Outro aspecto de estadualização da política indigenista é a do atendimento à saúde indígena. Com a política de saúde da Funasa, os recursos são entregues às Ongs e/ou aos estados e municípios, que fazem a sua própria versão de política indigenista. Os índios têm sofrido muito com o atendimento de saúde que vem dos municípios e das Ongs.
Mais recentemente, diversos estados da União têm criado secretarias ou instituições dentro do governo para assistir aos povos indígenas de seus estados. Blairo Maggi, do Mato Grosso, é um deles; Eduardo Braga, do Amazonas, outro; Binho Marques, do Acre; Requião, do Paraná, também; agora, Ana Júlia Carepa, do Pará.
Esses estados se colocam como substitutas da Funai, considerando que a Funai não está cumprindo suas obrigações. È evidente que mais do que boas, más intenções estão por trás disso tudo.
Por fim, as Ongs neoliberais do indigenismo brasileiro, especialmente o ISA, têm sido as mais ferrenhas críticas da Funai e têm apoiado essas iniciativas de estadualização. Por sua visão neoliberal do mundo, elas condenam o governo federal, a tradição rondoniana da política indigenista e acreditam que seriam capazes de assumir a questão indígena brasileira, no que são apoiadas pelas Ongs internacionais. Por sua vez, a estadualização de aspectos da questão indígena dilui as verbas orçamentárias da União e assim ficam menos contabilizáveis.
A estadualização vai desembocar em intensificação do assédio dos estados e municípios sobre os povos indígenas. A vida dos índios vai ficar mais difícil ainda.
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