- O Estado de S. Paulo
Sua falta de diplomacia no modo de agir é uma legítima preocupação num mundo instável
Numa democracia regida por uma Constituição, como os EUA, o presidente exerce seu poder dentro de certos limites. Um limite jurídico do poder político no plano interno é a separação dos Poderes, que Madison defendeu como meio de evitar os riscos de concentração de todos os poderes nas mãos de muitos, de poucos ou de um. Outro é o reconhecimento jurídico dos direitos humanos fundamentais, que integra a experiência constitucional americana e explicita o direito dos indivíduos de não padecerem os desmandos do poder. Trump, nestas primeiras semanas de sua presidência, está testando os limites internos do seu poder e lidando com posicionamentos críticos da sociedade civil norte-americana, dos que se opõem às suas políticas. Trump está também testando os limites externos do poder dos EUA.
Os EUA são uma grande potência, mas não são autossuficientes nem vivem em isolamento autárquico. Participam de um mundo integrado por outros Estados, os quais, na dinâmica de funcionamento da sociedade internacional, vão pôr os limites externos ao exercício do poder americano. No caso de Trump, a afirmação excludente e autorreferida do America First.
A vida internacional não se circunscreve à guerra de todos contra todos de que falava Hobbes, ainda que a guerra persista como uma onipresente situação-limite. Com efeito, os Estados, em função de sua crescente interdependência, foram criando, por mútuo acordo, normas e instituições voltadas para reger suas respectivas e recíprocas condutas. Elas têm seu lastro no entendimento generalizado de que existe um interesse comum na sua manutenção, ao ensejar, num mundo globalizado, tanto a coexistência quanto a cooperação entre Estados e sociedades.
O Direito Internacional é uma expressão desta realidade e entre suas funções, na dinâmica da convivência coletiva interestatal, estão informar sobre a provável conduta dos demais atores estatais e indicar o padrão aceitável de conduta. Estabelece, desse modo, um quadro de referência dos limites externos das “regras do jogo” da diplomacia.
A diplomacia, como instrumento de política externa, tanto bilateral quanto multilateral – pela qual Trump demonstra pouco apreço, pela maneira como vem desconsiderando o Departamento de Estado –, tem a sua razão de ser na necessidade dos Estados de se comunicar e interagir de maneira institucionalizada. A diplomacia é diálogo, e não monólogo solipsista. Abre a oportunidade para a compreensão do ponto de vista dos outros, do que querem e do que não podem aceitar, oferecendo caminhos para a busca de terreno comum. Como dizia o diplomata britânico lorde Strang, “num mundo em que a guerra é ao mesmo tempo uma tragédia e um pesadelo de todos, a diplomacia é do interesse de todos”.
É por isso que a falta de diplomacia na maneira de agir de Trump é uma legítima preocupação num mundo instável de polaridades indefinidas, alimentado pela geografia das paixões e permeado por tensões difusas. Nunca é demais lembrar que gestos e palavras integram a ação diplomática e que as palavras possuem, para evocar Cecília Meireles, uma “estranha potência” que pode ser a do “sonho” e da “audácia”, mas também a de carregar “calúnia, fúria e derrota”.
Os gestos de Trump, suas hipérboles, seu uso do Twitter como meio preferido de comunicação sincopada, seu à-vontade na afirmação de “fatos alternativos” têm consequências, dada a importância dos EUA.
Exemplifico com uma referência à OMC. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece que todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser por elas cumprido de boa-fé. Trump, ao afirmar que defenderá agressivamente a soberania americana em política comercial, levando em conta apenas as leis do seu país, está colocando na pauta o não cumprimento de direitos e obrigações assumidas. Mina assim a confiabilidade do seu país e sua boa-fé no trato da vida internacional.
A OMC, ao aprofundar a experiência do Gatt, construiu um sistema multilateral de comércio de vocação universal, regido por normas que são expressão da reciprocidade do interesse de suas partes em cooperar, evitando os riscos do unilateralismo na prática do comércio internacional.
O ativo da OMC são as suas normas e a sua observância. Elas existem para assegurar às partes a segurança e a previsibilidade das expectativas.
As manifestações de Trump e o documento sobre política comercial que enviou ao Congresso acerca da possibilidade de os EUA criarem, unilateralmente, ao arrepio das normas da OMC, novas barreiras tarifárias e não tarifárias, e de não cumprirem as decisões do seu sistema de soluções de controvérsias, minam a confiança no sistema multilateral de comércio. Como este se baseia na reciprocidade de interesses e no jogo de mutual claims and tolerance de que falava Myres McDougal, internacionalista norte-americano, a ascensão aos extremos da postura do America First tende, como observou Roberto Azevêdo, o qualificado e recém-reeleito diretor-geral da OMC, “a promover reação em cadeia, com efeito dominó desastroso para todos”.
O comércio internacional virou nos EUA, mas não apenas lá, para os populismos nacionalistas, um bode expiatório para problemas que no fundo não são do comércio, mas das transformações dos processos produtivos no mundo contemporâneo. Por isso, como destacou Azevêdo, “fechar os países para o comércio não é a solução”. Lembrou as lições da crise dos anos 1930, quando as barreiras comerciais acabaram com quase dois terços do comércio mundial, multiplicando as tensões que contribuíram para pavimentar o caminho para a 2.ª Guerra.
Foram os horrores da guerra que inspiraram a criação de uma ordem mundial mais propícia à cooperação que aos conflitos, da qual a OMC é parte integrante. Pôr a OMC em questão é um dos riscos da repercussão geral que Trump está assumindo no seu modo de testar os limites externos do poder de seu país.
*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores - Governo FHC
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