- O Globo
Quem sabe iniciamos um novo país após a lista de Janot. Saiu, afinal, a lista do Janot, o documento mais esperado na vida pública brasileira. Além de mais esperado, o documento que se imagina mais decisivo para o futuro do país, desde a carta-testamento de Getulio Vargas. Só que nele não há projeto político, nem poesia de exaltação. Apenas nomes e os supostos malfeitos pelos quais serão investigados.
Pelas personalidades citadas e as razões aparentes de suas citações, a lista do Janot é a ponta de um iceberg imensamente profundo, responsável pelos piores desastres na rota de navegação do país. O iceberg da oligarquia brasileira, um conjunto de poderes de uma só classe que, ao longo da História, transformou o Estado em propriedade privada em seu próprio benefício. A lista do Janot nos entrega alguns dos mais significativos representantes atuais da oligarquia que controla e rege o país desde sempre.
A oligarquia que administrou seu regime de poder durante toda a República que ela mesma proclamou, em represália à Abolição que o Império inventou e que prejudicou sua economia baseada no escravismo. O mesmo Império do qual foi senhora, com seus senhores de terras herdadas das Capitanias Hereditárias que o colonialismo português instalara no Brasil depois da “Descoberta”. De vez em quando, um herói da República nos trazia inesperadas esperanças; como Vargas, um oligarca com sentimento de culpa, ou Lula, um homem do povo fascinado pelo fascinante mundo da oligarquia.
Se as acusações da lista de Janot derem em alguma coisa, talvez estejamos assistindo ao início da passagem dessa oligarquia que comanda o Brasil desde sempre. Os palácios de Brasília e do resto do país ficarão desertos, com seus salões vazios e suas mesas de reunião cobertas de papéis ao vento. Quem sabe poderemos tentar começar um novo país, com gente que a gente ainda não conhece, que não nos iluda com populismo e xenofobia, com o ódio ensaiado e oportunista aos que estavam aí.
Na lista do Janot estão os mesmos sobrenomes, as mesmas famílias de sempre, com seus herdeiros, arrivistas e parceiros que se organizam para eternizar o poder que não podem perder. Agora mesmo, graças a seu direito de mudar a Constituição, estão tentando impor ao país um regime eleitoral distrital com lista fechada pelos partidos. Ou seja, seremos obrigados a votar em quem eles escolherem e quiserem, os mesmos nomes de sempre, desinteressados em renovar Câmera e Senado, incapazes de mudar o Brasil.
Aviso aos navegantes: enquanto isso, Geert Wilders foi derrotado na Holanda, mas Jair Bolsonaro já tem cerca de 10% de intenção de votos para 2018 e pode crescer. Basta conquistar a cabeça da população fragilizada, com a mesma linguagem que elegeu Donald Trump e que encanta tanta gente na Europa neodireitista. A linguagem do medo, do elogio da mediocridade, do ressentimento contra a inteligência e a democracia.
Em entrevista à “Folha de S.Paulo”, Bolsonaro declarou que “não se combate violência com amor, se combate com porrada (...) Não vai ser com política de direitos humanos que vamos resolver a violência”. Ou, no fim da entrevista: “Por isso que essa porra desse país está nessa merda aí. É por isso que o pessoal gosta de mim. (...) Vocês estão cavando a própria sepultura”. E se ele acaba sendo eleito, o que é que a gente faz?
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“Chica da Silva, o musical”, mais uma obra sobre o extraordinário personagem do Brasil do século XVIII, está em cartaz no Teatro do Sesi, na Avenida Graça Aranha, uma produção de Alexandre Lino, escrita por Renata Mizrahi e dirigida por Gilberto Gawronski. Desta vez, sem o “X” das obras anteriores, a peça, diferentemente do filme e da novela históricos, se passa em dois tempos. No passado, ela aborda as relações de Chica da Silva com João Fernandes de Oliveira, seu amante e senhor; no presente, um noivado interracial cheio de problemas.
Nas duas épocas, a natureza de Chica vitoriosa sobre o racismo, a intolerância e a falsidade, é uma proposta de refundação do Brasil, baseada em valores mais justos com o que somos. Um espetáculo extrovertido como seu personagem principal, com uma bela e viva direção musical afro-brasileira de Alexande Elias, coroada por um final de exaltação inspirada pelo clássico de Jorge Ben Jor. À frente disso tudo, uma atriz excepcional, Vilma Melo, ganhadora do Prêmio Shell de Teatro deste ano. Como quando Zezé Motta e Taís Araujo a interpretaram, a danada da Chica só se incorpora em quem presta.
*Cacá Diegues é cineasta
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