Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
"Fecha esta exposição." Era 1969, a Petite Galerie expunha as obras de Carlos Vergara, já naquela época um nome importante nas artes visuais brasileiras. Em exibição estava "Berço Esplêndido", instalação de caixotes com um manequim como um corpo morto enrolado na bandeira dos Estados Unidos e do Brasil. Pelo chão da sala, uma palavra repetida muitas vezes: penso, penso, penso.
Um general morava perto da galeria, em Ipanema. Passou por ali, ficou irritado com o que viu e deu a ordem. "O general não disse nem o nome. Mandou fechar, simples assim, simples como um bom-dia", afirma Vergara, 50 anos depois. Franco Terranova (1923-2013), dono da Petite Galerie, ligou para o artista, contou a história, e os dois desmontaram a exposição.
"Nasci em 1941, vivi toda a época libertária juscelinista. Para quem teve um início assim, foi muito violento. Pensei em ir para a clandestinidade, mas achei que minha arte poderia ser mais útil. Com trabalhos que não fossem das musas, fossem mais perigosos, que contivessem dados do real, como os músicos faziam, o teatro fazia, todos tentando manifestar uma visão libertária do mundo", diz o artista.
Com um público mais reservado, as artes plásticas foram menos afetadas pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, do que a música, o cinema e o teatro, mas algumas manifestações criaram enormes polêmicas no país, como as trouxas ensanguentadas espalhadas pela cidade por Arthur Barrio, numa referência à violência da repressão. Ou a performance de Antonio Manuel nu, apresentando-se como obra de arte no Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Estava conectado com a "body art", um dos caminhos da arte no mundo. Mas aqui foi proibido, estávamos em 1970.
"Depois ele construiu um belo trabalho com a foto dele nu numa caixa", diz Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, curador e professor. Duarte mostra como o desdobramento da política na produção artística nessa época se dá por uma obra mais reflexiva, uma tendência internacional que faz uma crítica forte da arte como mercadoria. "São trabalhos muito importantes, mas que não se entregam sem o pensamento, você é obrigado a pensar", diz.
No Brasil ocorre com Waltercio Caldas, Antonio Dias (1944-2018) e, um pouco mais tarde, Tunga (1952-2016), um grupo de artistas com trabalhos de muita potência que repercutem hoje em todo o mundo. "O interesse em não produzir uma obra comercial é político", afirma.
Fazer pensar ficou perigoso nos anos de chumbo. O poder público foi usado como polícia pedagógica, destinada a perseguir desviantes, rotulados de comunistas e acusados de pregarem ideias para destruir os pilares da civilização ocidental: a família, a moral sexual e as bases do direito penal e civil. Só depois da Lei da Anistia (1979), foram reintegrados à universidade os 66 professores expulsos com o AI-5, entre eles Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), a historiadora Maria Yeda Linhares (1921-2011). Para combater o pensamento marxista que teria se infiltrado nas instituições culturais, o Estado abriu inquéritos policiais e militares contra "think tanks" (Iseb, por exemplo) e centros de cultura, como o CPC da UNE. Interveio nas escolas e universidades, com uma legislação repressiva forte, aulas de moral e cívica do ensino fundamental às faculdades e incentivos à espionagem. E usou a censura sem moderação.
"Criou-se um clima de medo e revolta. Uma situação muito violenta contra as atividades intelectuais e culturais. A censura, instituída por lei em 1970, vai ser muito pesada contra artes e espetáculos regidos por essa lei", diz Marcelo Ridenti, professor do Instituto de Filosofia da Unicamp e autor de livros sobre cultura e ditadura.
As histórias são conhecidas, mas os números impressionam. Em dez anos, os censores examinaram em torno de 22 mil peças de teatro, das quais 700 foram proibidas na íntegra e outras centenas tiveram trechos cortados, contabiliza a pesquisadora Miliandre Garcia.
Cerca de 500 filmes (muitos estrangeiros) foram banidos das telas brasileiras, a maioria por questões morais ou religiosas - um exemplo foi "Último Tango em Paris" (1972), clássico do cinema de Bernardo Bertolucci (1941-2018). A literatura foi um pouco menos afetada, mas 430 livros não puderam chegar às livrarias, dos quais 92 escritos por brasileiros. Centenas de letras de canções foram vetadas pela censura, levando Chico Buarque a recorrer a pseudônimos e sair do país, mesmo caminho seguido por Caetano Veloso e Gilberto Gil. A imprensa foi controlada de modo severo entre 1969 e 78, sujeita a arbitrariedades de censores, já que não havia regulamentação específica para jornais e noticiários em televisões e rádios.
Em muitos jornais, sob mordaça, estampava-se o ufanismo do Brasil Grande e a família tradicional, imagens só contestadas mais tarde com a criação da imprensa alternativa iniciada com "O Pasquim" e depois o "Opinião" - este teve 5 mil páginas publicadas e 5 mil vetadas.
"A cultura é muito flexível e sobrevive. Quem falou muito depois do AI-5 foi a poesia marginal", diz Heloisa Buarque de Hollanda, a primeira a chamar atenção para os poetas do mimeógrafo.
Lentamente um reflorescimento cultural se inicia, com o surgimento da contracultura, não diretamente política, mas muito crítica à situação do país. Os movimentos de vanguarda reaparecem, os exilados culturais começam a voltar. "É uma reação ainda à meia voz, foi se criando uma cultura alternativa muito viva que só fez crescer", diz Ridenti. Era o início da distensão, lenta e gradual.
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