sábado, 8 de dezembro de 2018

A relação entre arte, democracia e utopia

Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Todos estão em torno dos 70 anos, os cabelos são grisalhos, os corpos têm as marcas do tempo. São 12 ao redor de uma mesa, as vozes às vezes se quebram num choro contido. A plateia, uma maioria de companheiros de geração salpicada por muitos jovens, enxuga as lágrimas, em meio a sorrisos ternos provocados pelas lembranças. É uma leitura dramática, mas não como as outras que marcam o início de ensaios. "O Mutirão", nome provisório desse espetáculo, está sendo construído há dois anos em um trabalho de criação coletiva. É uma arqueologia sentimental do Tuca, grupo de teatro universitário da década de 60, entremeada com a memória dos 50 anos de vida dos então jovens atores amadores, trazendo junto meio século da história do Brasil.

As apresentações aos sábados de manhã, na UFRJ, e as sessões especiais para estudantes universitários comovem. Remexem num passado doloroso, revisitado também em documentários como "Torre das Donzelas", em que Susanna Lira retrata as presas políticas durante a ditadura militar no presídio Tiradentes, ou na transposição para o cinema de "Rasga Coração", peça-símbolo da luta contra a censura escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e filmada agora por Jorge Furtado. O Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa estreou nesta semana a remontagem de "Roda Viva" e mostras no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (encerrada no mês passado) ou no Museu de Arte do Rio (MAR) discutem, respectivamente, os custos da retirada dos direitos no imaginário cultural do país e a relação entre arte, democracia e utopia.

Lembrar para não repetir está no espírito de todas essas manifestações culturais. Talvez a mais despretenciosa, mas não menos poderosa, seja a memória do engajamento cultural contra a ditadura e a reflexão sobre o tempo político vivido, encenada pelos agora envelhecidos atores amadores, para comemorar os 50 anos do Tuca. "Ficamos atrevidos, achamos que nossa geração tem algo a dizer", reforça um deles para o público. "Estamos criando algo novo, tudo tem uma ressignificação", diz Amir Haddad, o diretor do passado e do presente, em mais um ensaio na semana passada.

Esse tempo revivido começa com a formação do grupo em 1966, tem o momento de glória com a montagem de "Coronel de Macambira" em 67 e a fase feliz acaba em dezembro de 68 com o AI-5. Foram dois anos que deixaram marcas na trajetória de cada um e na história do teatro. "Pouco mais do que um adolescente, fiquei encantado com a encenação. Ali, em plena ditadura, o Brasil era o boi, que afinal ressuscitava, e dele se ouvia o rumor dos passos", disse o deputado Chico Alencar (PSol), num depoimento ao "Globo" em 2016.

A vida brasileira desfilava na grande praça montada no palco, nesta adaptação de "Bumba Meu Boi", criada pelo poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o também famoso engenheiro dos projetos de Oscar Niemeyer (1907-2012). As músicas, compostas por Sérgio Ricardo, eram todas originais e jamais foram gravadas. Haddad, um homem de teatro já confirmado, largou tudo para, encantado, trabalhar com aquele bando de jovens: eles eram 36 no palco, revezando-se em 45 papéis, mas eram muito mais atrás das cortinas, ajudando, aplaudindo e discutindo, registrou Arthur Poerner, no "Correio da Manhã", em 1966: "O Tuca é fundamentalmente o movimento estudantil".

O trabalho teatral era parte da luta pela democracia. O projeto do grupo era levar o teatro à periferia, aos sindicatos, às cidades pequenas. Eram apenas estudantes contra a ditadura, mas, após o AI-5, muitos deles foram presos, torturados, exilados e demitidos dos empregos.

E se a gente lesse de novo o "Macambira"? A ideia foi lançada no primeiro reencontro do grupo há três anos e resultou no espetáculo de agora. Nesse "Mutirão", trechos do texto e das músicas originais são intercalados com o relato do processo de criação e depoimentos dos atores sobre como eram no passado, por onde andaram e como são agora. "Tudo que é dito aqui foi intensamente vivido ou testemunhado por nós. Nada é ficção", diz Amir Haddad, narrador do espetáculo.

Ninguém conta para o público a sua história, mas todos reconhecem como seus os sentimentos vividos por cada um dos outros. Por exemplo, a dor e o medo na cadeia. "Não dá para esquecer. O barulho das chaves na Ilha das Flores, cada vez que o guarda ia buscar alguém para o interrogatório. Esse barulho a gente carrega pela vida toda", diz uma delas.

Ou a solidão do exílio para os que foram e o clima opressivo criado pela desconfiança e a repressão para os que ficaram. "Essa atmosfera que asfixia a liberdade dificulta a respiração", diz um deles.

O humor e a ironia permeiam os relatos. "Chegamos [as três exiladas] a Santiago do Chile, e, talvez por ver uma de nós carregando um violão, um jornalista perguntou: 'Ustedes no son el trio Bangu?'." Na volta ao Brasil, com a Anistia, a alegria se mistura ao estranhamento. "Reencontrar os amigos traz um sentimento ambíguo. Eles estão diferentes, mudaram. Descubro que eu também", reconhece.

Com o fim da ditadura, a vida retomou uma certa normalidade, e a maioria seguiu as profissões para as quais se preparavam. Haddad criou o Tá na Rua e continua dando aulas. Três deles se tornaram atores profissionais: Márcia Fiani, Renata Sorrah e Roberto Bonfim, outros são economistas, químicos, engenheiros, professores. Para todos, é importante contar os sonhos, as derrotas e as vitórias. A emoção do público parece demonstrar que é importante ouvir. No ano que vem o espetáculo volta ao mesmo lugar, no mesmo horário.

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