O Globo
Estamos diante de um desesperado desejo de
grandeza ou, se quiserem, um profundo medo da decadência
Há muitas teses para interpretar o tsunami de
medidas de Donald Trump.
Respeito todo o esforço para desvendar a estratégia política por trás dessa
avalanche. Para mim, existe uma lógica simples, sobretudo a partir das
palavras. Uma secretária de Trump chamou os imigrantes ilegais venezuelanos de
sacos de lixo. Elon Musk disse que a Usaid estava corroída por vermes.
Trump não só privou pessoas trans de direitos legais, como decidiu enviar mulheres a presídios masculinos, indiferente à violência que as destruiria. A lógica se desdobra de indivíduos para minorias e de minorias para populações, como os 2 milhões de palestinos da Faixa de Gaza. Simplesmente deveriam, na lógica de Trump, ser retirados de suas terras para dar lugar a um resort de luxo.
Certamente, no desdobrar dessa lógica, caso
ele tome a Groenlândia,
se desfazerá dos esquimós e da cultura inuíte para explorar os metais raros nas
geleiras que se derretem em ritmo veloz. O que importam alguns nativos, diante
da riqueza de metais raros? O que importa o oceano se não podemos entupi-lo com
plástico? O que importam eventos extremos num planeta aquecido?
Carl Jung disse uma vez que era preciso
conhecer a cabeça humana, porque o maior perigo de todos se abriga nela.
Pressinto esse perigo na cabeça de Trump e de todos que o apoiam. Em primeiro
lugar, a suposição de domar a natureza, submeter seus ritmos ao desejo humano
de acumular riquezas. Em segundo, colocar as riquezas, as coisas, acima das
pessoas que precisam ser esmagadas por oferecer resistência ao ritmo de
acumulação.
Os desejos de onipotência se estendem para
além da própria matéria. Por que aceitar a diversidade humana, se ela pode ser
reduzida à simplicidade de nossa visão do mundo? Pessoas trans devem
desaparecer na nossa rígida divisão de gêneros.
Como se não bastassem a natureza, pessoas,
minorias, povos inteiros, a onipotência tem também ambição, por assim dizer,
geográfica. O Golfo do México passará a ser Golfo da América, e os jornalistas
que não aceitarem as novas denominações não entram na Casa Branca.
O fato de Trump ter vencido as eleições e
contar com o apoio da maioria significa que as coisas são mais complicadas. Não
se trata apenas de um delirante, mas de delírio coletivo. Algo acontece para
que a nação mais poderosa do mundo saia por aí falando em anexar territórios,
expulsar populações, mandar imigrantes ilegais para uma prisão destinada a
terroristas, famosa pela brutalidade.
Deve ser algo muito forte para que o segundo
homem mais poderoso dos Estados Unidos,
Elon Musk, assista passivamente a uma determinação de enviar mulheres trans
para presídios masculinos. Ele aceitaria isso para sua própria filha? Ou será
que a considera morta apenas porque fez transição de gênero?
Continuarei atento a todas as análises de
estratégia política. Mas acho que esse período que se abre, assim como outras
fases sombrias na História, não pode ser totalmente explicado sem esse mergulho
no enigma da mente humana. A Escola de Frankfurt não descuidou desse tema, ao
se debruçar sobre a história alemã que resultou na Segunda Guerra. Para
explicar a época, souberam combinar economia, sociologia e psicologia. Alguns,
como Herbert Marcuse e Erich Fromm, avançaram na compreensão do caráter totalitário.
Agora estamos diante de um desesperado desejo de grandeza ou, se quiserem, um
profundo medo da decadência. Mas, de qualquer forma, temos muito a estudar.
Outro ramo de trabalho é compreender como a
onda americana tem admiradores tropicais. Eles são pressionados por uma
contradição: esperam sentir-se grandes com a grandeza americana, mas não
percebem quanto ela depende de apequenar os outros, os imigrantes, os países do
Sul. Como se sentem quando ouvem a frase de Trump “Não precisamos deles, eles é
que precisam de nós”?
Gostaria de saber o que vai nessas cabeças
para além de guerra de bonés.
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