sábado, 9 de agosto de 2025

O líder da esquerda mundial - Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo

Trump culpa o comércio aberto pelo suposto declínio dos EUA e engaja-se na missão de reverter a globalização

O paradigma do livre comércio, que nasceu com Adam Smith e David Ricardo, os "pais fundadores" do liberalismo, atingiu um apogeu na segunda metade do século 19, era do navio a vapor e das ferrovias. Entrou em colapso com a Grande Depressão, mas ressurgiu no pós-guerra, à sombra do Gatt (1947) e, décadas depois, da OMC (1995). A obra desses quase 80 anos encontra-se em demolição.

O Gatt (Acordo Geral de Comércio e Tarifas) foi firmado na moldura das instituições multilaterais impulsionadas pelos EUA. Suas oito rodadas de negociações, concluídas pelo estabelecimento da OMC (Organização Mundial de Comércio), basearam-se na cláusula de "nação mais favorecida" (MFN).

MFN é o fundamento de um sistema comercial não-discriminatório. Prescreve a obrigação de estender as tarifas mais baixas concedidas a um parceiro comercial a todos os demais parceiros, com a solitária exceção dos acordos de livre comércio. Por essa via, protege os intercâmbios globais da profusão de medidas protecionistas que, aplicadas no rastro da Crise de 1929, aceleraram a marcha da depressão econômica mundial.

As rodadas do Gatt sofreram, invariavelmente, a crítica das correntes de esquerda, que as interpretaram como veículos dos interesses dos países ricos e das grandes corporações, em detrimento dos povos. No início da Rodada do Milênio, a primeira da OMC, em 1999, 40 mil manifestantes antiglobalização protagonizaram a "Batalha de Seattle".

A globalização, etapa aberta com a dissolução da URSS (1991) e consolidada pelo ingresso da China na OMC (2001), propiciou a redução das barreiras ao comércio, o aumento dos intercâmbios financeiros e a montagem de cadeias de suprimentos globais. Desde o início, a esquerda profetizou que a globalização (o "neoliberalismo", na linguagem militante) provocaria ampliação da desigualdade entre as nações e da miséria nos países pobres.

Nunca uma previsão revelou-se tão equivocada. Nos 23 anos seguintes à entrada da China na OMC, o crescimento médio anual do PIB dos países de alta renda foi de 1,9%, contra 5,5% para os países de renda média e baixa, 4% para a África Subsaariana e 2,3% para a América Latina e Caribe. Nesse longo intervalo, apesar da crise financeira global (2008-2009) e da pandemia de Covid (2020-2021), a miséria reduziu-se bastante em quase todos os países em desenvolvimento.

A globalização produziu choques econômicos profundos justamente nos países ricos, menos pelos efeitos da concorrência comercial e mais pelas implicações da revolução digital e do declínio das indústrias tradicionais. A ascensão da direita nacionalista, nos EUA e na Europa, deve-se parcialmente aos deslocamentos sociais associados a tais choques econômicos.

Trump culpa o comércio aberto pelo suposto declínio dos EUA – e engaja-se na missão de reverter a globalização. Na sua guerra tarifária, ignora as regras da OMC, impondo unilateralmente tarifas discriminatórias a cada parceiro comercial. Nesse passo, a potência que figura como maior importador do mundo fragmenta o sistema comercial global numa coleção de acordos bilaterais desiguais.

O presidente americano, com suas ordens executivas, derrota o "neoliberalismo", triunfando naquilo que fracassaram os ativistas de Seattle com seus coquetéis molotov. O líder da esquerda mundial chama-se Donald Trump.

 

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