Folha de S. Paulo
Trump culpa o comércio
aberto pelo suposto declínio dos EUA e engaja-se na missão de reverter a
globalização
O paradigma do livre
comércio, que nasceu com Adam Smith e David Ricardo, os "pais
fundadores" do liberalismo, atingiu um apogeu na segunda metade do século
19, era do navio a vapor e das ferrovias. Entrou em colapso com a Grande
Depressão, mas ressurgiu no pós-guerra, à sombra do Gatt (1947) e, décadas
depois, da OMC (1995).
A obra desses quase 80 anos encontra-se em demolição.
O Gatt (Acordo Geral de Comércio e Tarifas) foi firmado na moldura das instituições multilaterais impulsionadas pelos EUA. Suas oito rodadas de negociações, concluídas pelo estabelecimento da OMC (Organização Mundial de Comércio), basearam-se na cláusula de "nação mais favorecida" (MFN).
MFN é o fundamento de um
sistema comercial não-discriminatório. Prescreve a obrigação de estender as
tarifas mais baixas concedidas a um parceiro comercial a todos os demais
parceiros, com a solitária exceção dos acordos de livre comércio. Por essa via,
protege os intercâmbios globais da profusão de medidas protecionistas que,
aplicadas no rastro da Crise de 1929, aceleraram a marcha da depressão
econômica mundial.
As rodadas do Gatt sofreram,
invariavelmente, a crítica das correntes de esquerda, que as interpretaram como
veículos dos interesses dos países ricos e das grandes corporações, em
detrimento dos povos. No início da Rodada do Milênio, a primeira da OMC, em
1999, 40 mil manifestantes antiglobalização protagonizaram a "Batalha de
Seattle".
A globalização, etapa aberta
com a dissolução da URSS (1991) e consolidada pelo ingresso da China na OMC
(2001), propiciou a redução das barreiras ao comércio, o aumento dos
intercâmbios financeiros e a montagem de cadeias de suprimentos globais. Desde
o início, a esquerda profetizou que a globalização (o
"neoliberalismo", na linguagem militante) provocaria ampliação da
desigualdade entre as nações e da miséria nos países pobres.
Nunca uma previsão
revelou-se tão equivocada. Nos 23 anos seguintes à entrada da China na OMC, o
crescimento médio anual do PIB dos países de alta renda foi de 1,9%, contra
5,5% para os países de renda média e baixa, 4% para a África Subsaariana e 2,3%
para a América Latina e Caribe. Nesse longo intervalo, apesar da crise
financeira global (2008-2009) e da pandemia de Covid (2020-2021), a miséria
reduziu-se bastante em quase todos os países em desenvolvimento.
A globalização produziu
choques econômicos profundos justamente nos países ricos, menos pelos efeitos
da concorrência comercial e mais pelas implicações da revolução digital e do
declínio das indústrias tradicionais. A ascensão da direita nacionalista, nos
EUA e na Europa, deve-se parcialmente aos deslocamentos sociais associados a
tais choques econômicos.
Trump culpa o comércio
aberto pelo suposto declínio dos EUA – e engaja-se na missão de reverter a
globalização. Na sua guerra tarifária, ignora as regras da OMC, impondo
unilateralmente tarifas discriminatórias a cada parceiro comercial. Nesse
passo, a potência que figura como maior importador do mundo fragmenta o sistema
comercial global numa coleção de acordos bilaterais desiguais.
O presidente americano, com
suas ordens executivas, derrota o "neoliberalismo", triunfando
naquilo que fracassaram os ativistas de Seattle com seus coquetéis molotov. O
líder da esquerda mundial chama-se Donald Trump.
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