O Globo
O país que o governo
endossou não é o da diversidade, mas o dos estereótipos, da romantização da
miséria
Você deve se lembrar: antes das eleições de 2018, o Jornal Nacional fez uma campanha em que pedia aos telespectadores vídeos sobre “o Brasil que eu quero”. Pela amostragem (cerca de 50 mil, de todos os cantos do país), os brasileiros queriam menos corrupção e mais segurança; mais cidadania e menos intolerância; mais educação e menos preconceito. Mais saúde, mais emprego. E políticos melhores. Sete anos, um ex-presidiário e um futuro presidiário depois, não resta dúvida: o brasileiro é, antes de tudo, um otimista, um inquilino da ilusão.
Num vídeo
compartilhado em sua conta oficial no X, o
governo federal acaba de mostrar, em 2025, o Brasil que ele quer.
É um “Brasil com S” de
subdesenvolvimento, sovaco, sexualização do corpo feminino, sujeira,
subemprego, subsistência. De calçada sem acessibilidade, transporte público
precário, pichação, estrada de chão, má alimentação, desordem urbana. Um Brasil
multicolorido, de uma gente feliz que dança, canta e ri quando devia protestar,
e sobrevive à base de jeitinho, improvisos e gambiarras.
Se esqueceram de incluir
(talvez tenha ficado para a parte 2) os esquálidos bebês ianomâmis, os mendigos
assassinados pela polícia, os flagrantes diários de roubo de celular. As filas
nas portas dos sindicatos, de quem quer se livrar do parasitismo das “contribuições”
arrancadas à revelia. A via-crúcis dos que tentam recuperar o que foi tungado
de suas aposentadorias.
Em vez de samba, forró e
outras bossas, a trilha é um rock-brega. Mas poderia ter sido “Inútil”, do
Ultraje a Rigor: A gente não sabemos escolher presidente (vide as duas últimas
décadas)/A gente não sabemos tomar conta da gente (é preciso tutelar os meios
de comunicação, o Fundo de Garantia, o trabalho por aplicativo)/Tem gringo
(coagido a pagar por um muquifo em Belém mais que por uma suíte no Copacabana Palace)
pensando que nós é indigente.
Faltou no vídeo um vira-lata
caramelo, vivendo nas ruas, sujeito a toda sorte de perigos e maus-tratos — mas
essa mascote não nos merece. Estaríamos mais bem representados pelo Aedes
aegypti, pelo Schistosoma mansoni (que deve fazer a festa
nas águas contaminadas em que as crianças do vídeo se banham). Como na imagem
que abre a peça publicitária, dengue, zika, malária, febre
amarela ainda estão aqui.
O Brasil que o governo
endossou não é o da diversidade, mas o dos estereótipos, da romantização da
miséria, da precariedade como traço cultural — e olha que bastavam algumas
imagens do Museu do Pontal e seu emocionante acervo de arte popular. É de um
ufanismo perverso, que troca o sempre adiado “país do futuro” por um
aparentemente inescapável país do atraso. É o de quem levou ao pé da letra a
provocação “seja marginal, seja herói” — a propaganda do PT funde
na mesma imagem a soberania e a estética da ostentação, típica das facções, do
crime organizado, do tráfico, dos bicheiros, das milícias.
O Brasil que o brasileiro
quer é bem diferente desse dos que nos têm governado — e que não querem largar
o osso, seja por meio de golpe, seja de bravatas.
Pobre gosta de respeito e dignidade e faz o que pode para melhorar de vida. Quem gosta de pobreza é político populista, que precisa dela para seu projeto de poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário