O Globo
Verdades objetivas desaparecem — até para os
atores que provocaram o encobrimento
É um pouco angustiante acompanhar a evolução do entendimento dos conservadores sobre as movimentações antidemocráticas de 2022 e 2023. No começo, vemos algum estranhamento e mal-estar com os acampamentos em frente aos quartéis. Em 2023, o quebra-quebra do 8 de Janeiro é tão rejeitado que a principal explicação para ele era tratar-se de uma armadilha desenhada pela esquerda. A própria existência dos planos golpistas é inicialmente negada, de tão abjeta. Mas, aos poucos, uma cortina de fumaça vai sendo lançada, e as verdades objetivas desaparecem — até para os atores que provocaram o encobrimento.
No livro clássico de história militar
“Overlord” (Simon & Schuster, 1984), o historiador britânico Max Hastings
descreve os procedimentos adotados pelas forças aliadas na invasão da Normandia
em 1944, destacando as táticas sofisticadas de confusão e dissimulação
empregadas para encobrir a verdadeira natureza da operação.
A mais conhecida dessas táticas foi o uso de
cortinas de fumaça lançadas por navios britânicos ao longo da costa, com o
objetivo de proteger as forças de desembarque e ocultar os movimentos das
embarcações de apoio. Outras estratégias de engano operaram em escala ainda
mais ambiciosa. A mais notável foi a Operação Fortitude, uma manobra gigantesca
de desinformação que criou exércitos fictícios, movimentou tanques infláveis,
emitiu transmissões falsas e usou agentes duplos para convencer os alemães de
que o desembarque principal ocorreria não na Normandia, mas em Pas-de-Calais.
Hastings observa que os alemães “relutaram em transferir reforços para a Normandia,
mesmo dias depois do desembarque real”, tamanha a eficácia do engodo.
A cortina de fumaça lançada na guerra não foi
apenas física, mas também de comunicação — uma sobreposição de sinais falsos e
distrações que ocultou a realidade sob a dissimulação construída
meticulosamente. Algo semelhante ocorre na política brasileira: as
movimentações antidemocráticas, inicialmente rejeitadas por setores
conservadores, foram aos poucos ofuscadas por críticas e pelo realce a
detalhes, até que finalmente desapareceram os fatos.
O 8 de Janeiro foi inteiramente
desconstruído. Primeiro, enfatizou-se que as forças de segurança foram omissas
e que o Ministério da Justiça sumiu com imagens de câmeras, lançando a suspeita
de que tudo fora armado: ou era uma armadilha para estimular a manifestação a
desandar ou o próprio quebra-quebra era ação de infiltrados de esquerda (24% da
população brasileira acredita nessa tese conspiratória). Em seguida, o discurso
conservador enfatizou as penas elevadas da Justiça e destacou entre os presos
as mães de família e os idosos, como se fossem o perfil demográfico dominante.
Ao final, os conservadores consolidaram o
entendimento de que o 8 de Janeiro não passou de uma manifestação de pessoas de
bem, ordeiras, que saiu um pouco do controle, provavelmente por indução do
governo Lula ou de infiltrados de esquerda. A agitação golpista nos
acampamentos, a articulação com os generais golpistas, o objetivo de criar caos
para induzir uma intervenção militar, o tombamento de torres de transmissão, o
bloqueio de refinarias de petróleo, a paralisação de rodovias, tudo isso desapareceu
sob a fumaça.
Aconteceu o mesmo com as minutas do golpe. No
princípio, tudo era mentira, e elas nem sequer existiam. Depois, não passavam
de conjectura. Acrescentou-se em seguida que tudo era constitucional, que, se
fosse efetivado, passaria pelo rito de consultar o Conselho da República, o
Conselho de Defesa e enviar ao Congresso Nacional. Como poderia haver tentativa
de golpe sem Exército nas ruas? Onde estava o erro em cogitar acionar um
mecanismo previsto na Constituição? Assim, sob tanta distração, desapareceu a
realidade: a medida consistia em intervir no TSE para reverter o resultado
eleitoral e prender um ministro do Supremo — e só não foi tentada porque o
Exército a considerou golpista.
Há, porém, uma diferença crucial entre as
cortinas de fumaça da guerra e da política. Enquanto os estrategistas militares
sabiam exatamente o que encobriam, na política a névoa narrativa parece enganar
os próprios autores. A ênfase em detalhes laterais — como o perfil dos
manifestantes ou eventuais falhas processuais — desloca o foco dos fatos
objetivos, que são desaprendidos com a repetição do discurso. O que começa como
dissimulação deliberada se transforma, com o tempo, em crença genuína.
Não é tão diferente do mecanismo pelo qual a
esquerda jogou tanta fumaça no esquema de corrupção que ligava Petrobras,
empreiteiras e financiamento eleitoral, a ponto de hoje, para ela, parecer que
tudo aquilo provavelmente não existiu ou não passou de pretexto para prender
Lula e impedir que as empreiteiras seguissem fazendo o Brasil se desenvolver.
Só que a cegueira induzida dos conservadores é mais grave que a cegueira
induzida da esquerda, porque, no caso dos conservadores, o que desaparece é a
ameaça à própria democracia.
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