sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Cortina de fumaça - Pablo Ortellado

O Globo

Verdades objetivas desaparecem — até para os atores que provocaram o encobrimento

É um pouco angustiante acompanhar a evolução do entendimento dos conservadores sobre as movimentações antidemocráticas de 2022 e 2023. No começo, vemos algum estranhamento e mal-estar com os acampamentos em frente aos quartéis. Em 2023, o quebra-quebra do 8 de Janeiro é tão rejeitado que a principal explicação para ele era tratar-se de uma armadilha desenhada pela esquerda. A própria existência dos planos golpistas é inicialmente negada, de tão abjeta. Mas, aos poucos, uma cortina de fumaça vai sendo lançada, e as verdades objetivas desaparecem — até para os atores que provocaram o encobrimento.

No livro clássico de história militar “Overlord” (Simon & Schuster, 1984), o historiador britânico Max Hastings descreve os procedimentos adotados pelas forças aliadas na invasão da Normandia em 1944, destacando as táticas sofisticadas de confusão e dissimulação empregadas para encobrir a verdadeira natureza da operação.

A mais conhecida dessas táticas foi o uso de cortinas de fumaça lançadas por navios britânicos ao longo da costa, com o objetivo de proteger as forças de desembarque e ocultar os movimentos das embarcações de apoio. Outras estratégias de engano operaram em escala ainda mais ambiciosa. A mais notável foi a Operação Fortitude, uma manobra gigantesca de desinformação que criou exércitos fictícios, movimentou tanques infláveis, emitiu transmissões falsas e usou agentes duplos para convencer os alemães de que o desembarque principal ocorreria não na Normandia, mas em Pas-de-Calais. Hastings observa que os alemães “relutaram em transferir reforços para a Normandia, mesmo dias depois do desembarque real”, tamanha a eficácia do engodo.

A cortina de fumaça lançada na guerra não foi apenas física, mas também de comunicação — uma sobreposição de sinais falsos e distrações que ocultou a realidade sob a dissimulação construída meticulosamente. Algo semelhante ocorre na política brasileira: as movimentações antidemocráticas, inicialmente rejeitadas por setores conservadores, foram aos poucos ofuscadas por críticas e pelo realce a detalhes, até que finalmente desapareceram os fatos.

O 8 de Janeiro foi inteiramente desconstruído. Primeiro, enfatizou-se que as forças de segurança foram omissas e que o Ministério da Justiça sumiu com imagens de câmeras, lançando a suspeita de que tudo fora armado: ou era uma armadilha para estimular a manifestação a desandar ou o próprio quebra-quebra era ação de infiltrados de esquerda (24% da população brasileira acredita nessa tese conspiratória). Em seguida, o discurso conservador enfatizou as penas elevadas da Justiça e destacou entre os presos as mães de família e os idosos, como se fossem o perfil demográfico dominante.

Ao final, os conservadores consolidaram o entendimento de que o 8 de Janeiro não passou de uma manifestação de pessoas de bem, ordeiras, que saiu um pouco do controle, provavelmente por indução do governo Lula ou de infiltrados de esquerda. A agitação golpista nos acampamentos, a articulação com os generais golpistas, o objetivo de criar caos para induzir uma intervenção militar, o tombamento de torres de transmissão, o bloqueio de refinarias de petróleo, a paralisação de rodovias, tudo isso desapareceu sob a fumaça.

Aconteceu o mesmo com as minutas do golpe. No princípio, tudo era mentira, e elas nem sequer existiam. Depois, não passavam de conjectura. Acrescentou-se em seguida que tudo era constitucional, que, se fosse efetivado, passaria pelo rito de consultar o Conselho da República, o Conselho de Defesa e enviar ao Congresso Nacional. Como poderia haver tentativa de golpe sem Exército nas ruas? Onde estava o erro em cogitar acionar um mecanismo previsto na Constituição? Assim, sob tanta distração, desapareceu a realidade: a medida consistia em intervir no TSE para reverter o resultado eleitoral e prender um ministro do Supremo — e só não foi tentada porque o Exército a considerou golpista.

Há, porém, uma diferença crucial entre as cortinas de fumaça da guerra e da política. Enquanto os estrategistas militares sabiam exatamente o que encobriam, na política a névoa narrativa parece enganar os próprios autores. A ênfase em detalhes laterais — como o perfil dos manifestantes ou eventuais falhas processuais — desloca o foco dos fatos objetivos, que são desaprendidos com a repetição do discurso. O que começa como dissimulação deliberada se transforma, com o tempo, em crença genuína.

Não é tão diferente do mecanismo pelo qual a esquerda jogou tanta fumaça no esquema de corrupção que ligava Petrobras, empreiteiras e financiamento eleitoral, a ponto de hoje, para ela, parecer que tudo aquilo provavelmente não existiu ou não passou de pretexto para prender Lula e impedir que as empreiteiras seguissem fazendo o Brasil se desenvolver. Só que a cegueira induzida dos conservadores é mais grave que a cegueira induzida da esquerda, porque, no caso dos conservadores, o que desaparece é a ameaça à própria democracia.

 

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