O Estado de S. Paulo
A Feira do Livro é a sociedade resgatando, a partir de novos usos, o sentido mais basilar de espaço público: o encontro
Diante de tantos malfeitos, descuidos, omissões e irresponsabilidades, é possível perder de vista as muitas coisas boas que ocorrem diariamente no País. É possível esquecer-se de contemplar o todo. Destaco uma iniciativa incrível, resultado da audácia de pessoas que não apenas sonharam grande, mas realizaram grande. Uma observação: elas não estão sozinhas. Há muitas pessoas, famílias, entidades e empresas fazendo a diferença em várias áreas. Menciono esta iniciativa como exemplo – como sintoma – de uma realidade cívica maior. Apesar de todas as dificuldades, o Brasil tem sido palco de expressões de genuíno zelo pelo que é público, pelo que é coletivo.
Falo da Feira do Livro, realizada pela
Associação Quatro Cinco Um. Com a participação de mais de 150 editoras e
livrarias e mais de 200 convidados, a quarta edição ocorreu entre 14 e 22 de
junho na Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu.
Em primeiro lugar, faço um depoimento
pessoal. Moro perto da praça e, durante os nove dias do festival, o espaço
tornou-se um espetáculo contínuo de humanidade, de civilidade. Eram jovens,
adultos, crianças, idosos, grupos de amigos e famílias chegando com sorrisos no
rosto, entusiasmados para participar da feira. O clima era contagiante: de
abertura, de curiosidade, de diálogo, de convivência. Experimentava-se a
possibilidade, real e concreta, de estar na cidade a céu aberto sem pressa e
sem medo.
Tudo isso, verdadeiro oásis diante de um
cotidiano urbano de stress e violência, é resultado da imaginação de duas
pessoas, Alvaro Razuk e Paulo Werneck. Num cenário de pós-pandemia, com o setor
cultural fortemente afetado, eles tiveram a ideia de criar um festival
literário de rua em São Paulo, que fosse gratuito, aberto a todas as pessoas.
Era a sociedade civil resgatando, a partir de novos usos, o sentido mais
basilar de espaço público: o encontro. E, inspirados nessa ideia, souberam
mobilizar muitas outras pessoas, entidades, empresas, órgãos públicos. Sem o
trabalho e o apoio de todos, o festival não seria possível. Celebrar a Feira do
Livro é homenagear não apenas uma ideia genial, mas a capacidade de realização
e mobilização de seus organizadores.
Recentemente, por meio da Lei 18.274/2025, a
Câmara Municipal de São Paulo reco
O reserva-se o direito de selecionar e
resumir as cartas. Correspondência sem identificação (nome, RG, endereço e
telefone) será desconsiderada nheceu a importância da Feira do Livro,
colocando-a no calendário oficial da cidade. Com o objetivo de difundir a
cultura do livro e a leitura, bem como de desenvolver e fortalecer o
ecossistema editorial, estabeleceu-se que o festival literário da Charles
Miller seja realizado todos os anos no feriado de Corpus Christi e dias
próximos. A medida legislativa é mais do que merecida. É fundamental incentivar
iniciativas que colaboram na formação de novos leitores. É decisivo assegurar
que os espaços públicos sejam ocupados por pessoas, e não por tapumes, cada vez
mais assustadoramente presentes.
Ler é ato essencial de cidadania. Não há
autonomia individual sem leitura. Quando não lemos, ficamos limitados ao nosso
mundo imediato, à nossa experiência primária, ao que vemos e ouvimos com nossos
próprios olhos e ouvidos. A leitura é caminho de aprendizado, de expansão de
horizontes. Com razão, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996)
prevê como primeiro objetivo do ensino fundamental obrigatório “o
desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno
domínio da leitura, da escrita e do cálculo”. Desenvolver a capacidade de
leitura é elemento imprescindível das políticas públicas educativas.
Mas, por óbvio, a leitura não deve ser
preocupação exclusiva do setor público. A sociedade civil pode e deve
contribuir com uma multiplicidade de iniciativas e projetos paforum@estadao.com
ra o desenvolvimento do hábito de leitura. Paulo Werneck lembra que a pauta ESG
( Environmental, Social and Governance), tão falada nos dias de hoje, inclui o
compromisso ético com a democracia e com os direitos humanos. E não há como
avançar nessas causas, bem como no desafio da sustentabilidade, sem a leitura –
sem essa compreensão, plural e profunda, proporcionada pela leitura.
É contraditório, mas às vezes vemos pessoas
em cargos de liderança, inclusive tratadas como inteligentes e disruptivas,
desprezando a leitura e a possibilidade de formar novos leitores. O Brasil
seria o país dos analfabetos, ponto final. Esse pessimismo ignora um dado
básico: todos os países que são hoje paradigma de hábito de leitura já foram
tempos atrás terras de analfabetos. A cultura, por definição, não é estática –
como tão bem prova a história deste jornal, cuja fundação foi uma aposta na
capacidade de transformação do País por meio da leitura; como tão bem vem
provando a recentíssima (e já potente) trajetória da Feira do Livro.
O desafio é grande, mas não impossível:
prover as condições para que todos possam ler e desenvolver o hábito de
leitura. E aos que querem continuar sendo pessimistas, um alerta: evitem a
Charles Miller nas proximidades do Corpus Christi. Lá se tem a demonstração de
que um novo mundo, uma nova cidade, é possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário