quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Poesia | Marilia Gabriela - Receita de Ano Novo ( Carlos Drummond de Andrade)

 

Merval Pereira - A defesa da cidadania

- O Globo

O que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.

A mais importante delas é a autorização para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em caráter “excepcional e temporária”, em até 72 horas, libere a importação e distribuição de vacinas contra a Covid-19 já aprovadas em agências equivalentes dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão.

Com a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes para vacinar a população do estado.

Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.

Míriam Leitão - Os oásis em um ano áspero

- O Globo

Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota do capital.

A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.

Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.

Ricardo Noblat - O último general da ativa no governo está com os dias contados

- Blog do Noblat / Veja

Adeus a Pazuello

 Cabeças rolarão rolar dentro do governo para marcar a passagem de um ano infernal para outro capaz de renovar a esperança dos brasileiros em dias melhores. É sempre assim que agem os presidentes da República ao se verem em apuros uma vez que querem manter a própria cabeça no lugar.

Especialista em logística, ministro da Saúde que sucedeu a dois médicos que insistiam em dizer a Bolsonaro o que ele não queria ouvir, Eduardo Pazuello, posto ali para obedecer sem discutir às ordens que viessem do alto, é uma das cabeças que deverão rolar. É também o último general da ativa no governo.

A cobiça por seu cargo só faz crescer entre os políticos mais fisiológicos, aqueles corriqueiramente dispostos a socorrer governos enfraquecidos em troca de sinecuras. 2021 antecede 2022, ano de eleições gerais. Um ano assim serve para que os políticos façam caixa para financiar despesas futuras.

Maria Hermínia Tavares* - Poderia ser pior

- Folha de S. Paulo

Nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes

Fim de ano é época de dar sentido ao que aconteceu no período. Perguntar-se, por exemplo, como as instituições democráticas brasileiras se comportaram ao longo desses meses de medo e morte.
Para fazê-lo com algum método, nada melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes. Com a vantajosa circunstância de ter o respaldo de dois estudos recém-publicados por organizações independentes que monitoram o estado da democracia no mundo.

O primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown – o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.

De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.

Bruno Boghossian – Angústia e incompetência

- Folha de S. Paulo

Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação

Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.

A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.

O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.

Vinicius Torres Freire – A eficácia das vacinas chinesas

- Folha de S. Paulo

Irmã da Coronavac, a vacina do Doria, tem 79% de eficácia, mas falta informação

Uma das vacinas da estatal chinesa Sinopharm teria 79,34% de eficácia, segundo afirmou a empresa nesta quarta-feira (30) em uma nota de escassas e frustrantes vinte linhas. O produto é irmão da Coronavac, comprada pelo governo paulista e que já está sendo produzida pelo Instituto Butantan.

As vacinas são muito semelhantes; é possível esperar resultado similar da Coronavac, em uma especulação esperançosa, mas razoável, dizem dois imunologistas brasileiros ouvidos por este jornalista. As duas irmãs chinesas são feitas da mesma maneira, com vírus inativados.

O vírus é multiplicado em uma cultura de células, na mesma linhagem de células originadas do rim do macaco-verde africano e usadas faz quase 60 anos em pesquisa biotecnológica. O vírus depois é inativado (perde o poder de se replicar e causar doença) com a mesma substância, beta-propriolactona, mas mantém sua estrutura e, assim, ainda pode suscitar uma reação do sistema de defesa (imunológico). Os vírus inativados são misturados ao mesmo tipo de adjuvante, algum composto de alumínio, que facilita a ação da vacina. A diferença entre as duas pode ser a dosagem e o tempo entre as duas injeções necessárias.

Fernando Schüler* - A sociedade dos militantes

- Folha de S. Paulo

 Esqueça a política e descubra as coisas interessantes que temos em comum

Goste ou não dela, vale a pena ler a entrevista de Bari Weiss à Folha, dias atrás. É bom escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos dançam a Macarena (já me aconteceu). Todos conhecem a sua história. Ela foi contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de pensamento hegemônica da Redação e caiu fora pelo mesmo motivo.

A Redação do Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a responder a um agenda política. E o fez a partir dessa cisão típica dos tempos atuais, entre a gente bacana e esclarecida, "cujo trabalho é informar os outros", e os caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald Trump.

Daí aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o "diabo laranja". Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado e avesso às "ideias inconvenientes".

Foi o caso do editor James Bennet, banido por publicar artigo controverso do senador Tom Cotton. Ele provavelmente discordasse do senador, mas acreditava "dever aos leitores a exposição de contra-argumentos". Ingenuidade. Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha.

O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré.

Mariliz Pereira Jorge - Aborto legal no Brasil

- Folha de S. Paulo

Falta aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema

Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.

Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.

William Waack - De Dilma a Bolsonaro

- O Estado de S. Paulo

As questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas

A década que começou com Dilma e vai terminando com Bolsonaro tem uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas. Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou) problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa complacência em sua essência seguem as mesmas.

Sim, Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força armada e se empenham em condenar.

A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.

Eugênio Bucci* - A propaganda, a ciência, o imbróglio e o ano novo

- O Estado de S. Paulo

Fapesp corre o risco de perder 30% de sua verba e Bandeirantes aumenta a de publicidade em 70%

No gran finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina muito pior.

Nos derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa, o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7 milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.

Na mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.

Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?

Zeina Latif* - Governo em quarentena

- O Estado de S. Paulo

A inoperância do governo federal transborda e agrava o sofrimento social. Alguns ministérios cuja ação seria essencial pegaram a covid-19 e estão em isolamento por tempo indeterminado.

Repetitivo lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.

Do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar, apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho, do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das escolas fechadas.

Não podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica (-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis (-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos canais de denúncia.

Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.

Celso Ming - Os fatores que evitaram o maior desastre em 2020

- O Estado de S. Paulo

São quatro as razões que evitaram a queda de dois dígitos do PIB brasileiro

E o pior não aconteceu. No segundo trimestre, em plena pandemia, as projeções para o desempenho da economia do Brasil foram terríveis. Algumas chegavam a indicar um mergulho do Produto Interno Bruto (PIB) de quase 10% para todo o ano.

As novas previsões falam de uma queda de 4,4% (veja o gráfico). Essa é a última projeção do Banco Central, que coincide com a do mercado, como consta no Boletim Focus desta semana.

São quatro as explicações para esse tombo menos acentuado.

A primeira delas é a de que o Tesouro despejou R$ 322 bilhões em auxílios emergenciais para a população (66 milhões de pessoas), recursos que permitiram uma sustentação da demanda de bens essenciais – especialmente alimentos, medicamentos e moradia – durante o isolamento social necessário para combater a covid-19. Foi uma demanda que permitiu que a atividade econômica não entrasse em colapso. O efeito colateral foi o avanço inesperado da inflação, que, no entanto, tende a ser limitado.

O segundo grande fator de sustentação da economia foi o excelente desempenho do agronegócio. Como mostram as últimas projeções do IBGE e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção física de grãos na safra de 2020/21 deverá ter um aumento de 3,5%, para alguma coisa em torno dos 266 milhões de toneladas. Os preços também ajudaram, seja pelo aumento da demanda interna de alimentos, como mencionado acima, seja pela forte importação da China

José Pastore* - Vacina, coronavoucher e a nova década

- O Estado de S. Paulo

Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende apoiar a vacinação em lugar de prorrogar o auxílio emergencial. Para ele, a retomada em V da economia permitirá a absorção no mercado de trabalho dos brasileiros que estão parados. Dali para a frente eles poderão viver da renda do trabalho, e não da renda do coronavoucher.

Tudo indica, porém, que a tão desejada sincronia vai demorar algum tempo. Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?

Grande parte da retomada em V deveu-se ao sucesso dos programas de redução de jornada e suspensão do contrato de trabalho que manteve 10 milhões de empregos formais e propiciou dados positivos no Caged. Outra parte deveu-se ao próprio auxílio emergencial de R$ 600 e, depois, de R$ 300.

Mas esses programas terminam hoje. Noticia-se a possível prorrogação da redução de jornada e suspensão dos contratos, o que é animador. Mas, até o fechamento deste artigo, nada se falou sobre a prorrogação do coronavoucher. Lembremos que para cerca de 23 milhões dos beneficiados sua única renda é a do auxílio emergencial.

Luis Fernando Verissimo – Retrospectivas

- O Globo / O Estado de S. Paulo

As próximas terão que recorrer à ficção ou ao delírio para contar como foram 2020 e seus desdobramentos

Retrospectivas de fim de ano servem para passar o passado a limpo e organizar nossas lembranças, que, sem elas, seriam histórias sem nexo. O retrospectivista mais desatento da História foi Luís XVI, que, na véspera da Revolução Francesa, escreveu no seu diário: “Tudo calmo, nenhuma novidade no reino”. A tradição de recapitular os principais acontecimentos do ano teria começado no ano 1, quando um viajante no deserto anotou no seu caderno de viagem a presença daquela estranha estrela no céu da Judeia, brilhando mais do que as outras, como que mostrando um caminho, e disse “Epa”.

No jornalismo, uma retrospectiva de fim de ano é obrigatória e fácil de fazer. Basta juntar fatos e feitos que se destacaram durante o ano e pronto. O ano de 2020, que termina hoje, esteve cheio de notícias destacáveis, como todos os anos. É só reuni-las e teremos um típico ano com seus altos e baixos, esperando sua inclusão na retrospectiva. Como todos os anos. Certo?

Cora Rónai - Já não era sem tempo

´O Globo

Gente má faz mais barulho, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível

31 de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não precisava ter sido assim.

Em circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.

O ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.

Teria sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias “normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas, dar o exemplo.

Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.

Raul Jungmann* - Dias melhores virão

- Capital Político

Estranhos dias, estranho ano.  2020 não começou em janeiro, como os que lhe antecederam, nem sabemos quando terminará. Talvez nunca? Inesperado, de súbito, mudou nossas vidas. Não mais festas, futebol, cinema, teatro. Encontros, trabalho (amor?), agora só à distância, remotos.

Já a morte, que conosco nasce e a distância buscamos mantê-la, tornou-se contigua, palpável e nos assedia com a frequência das notícias da ida definitiva dos distantes e, mais e mais, dos próximos. Cada vez mais próximos. Sem despedidas, último adeus, anônimos. Sentenciados, passamos a viver em prisão domiciliar. Nunca dantes tão forçadamente próximos; nunca dantes tão virtuais, remotas esperanças.

Nosso espaço se mede em parcos metros quadrados, quase redondos, de tão compartilhados. E há que redobrar o autocontrole, mas há, também, (re)descobertas, sob a fuligem da rotina. Recomeços. Ao sair, “use a máscara”; na chegada, “tire os sapatos e a roupa, tome banho”. Pedágios, obrigatórios, não esqueça. Das máscaras psíquicas, às virtuais. E também as de pano, papel, recicladas, sintéticas, de variadas cores, modelos – outdoors de times, mantras e mensagens.

Guga Chacra - 2021, o ano sem Trump

- O Globo

Será um alívio acordar no dia 21 de janeiro sem Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos. Suas mentiras, seu discurso do ódio, seus delírios e seu negacionismo deixarão a Casa Branca. O futuro ex-presidente, claro, não desaparecerá. Ele desfruta de uma enorme base fanática que o trata como Deus. Mas seu poder de fato, de comandar a maior potência da história da Humanidade, se pulverizará. Suas postagens no Twitter serão mais gritos conspiratórios de um desequilibrado. Deixarão de ter peso de anúncios políticos como a demissão de integrantes de seu Gabinete.

Sem Trump e com Joe Biden na Presidência, a relação dos EUA com o restante do planeta se alterará drasticamente. Tende a melhorar bastante com a União Europeia e o Canadá. Pode seguir boa com o Reino Unido. Biden voltará a trabalhar com a aliança ocidental e retomará multilateralismo. A prioridade será tentar superar a pandemia neste ano com a vacinação, com a busca de uma normalização das nossas vidas e a recuperação da economia. Ao mesmo tempo, a questão climática ganhará força.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A Nação, refém do descaso – Opinião | O Estado de S. Paulo

A postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado ao tomar posse como presidente

 A Nação está refém do inconcebível descaso de Jair Bolsonaro pela vida e pela saúde pública, quando, como ocorre em qualquer país normal, deveria ser bem liderada por seu presidente no curso da mais letal emergência sanitária que se abateu sobre o Brasil desde 1918.

Nesta hora grave, a postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado sobre a Constituição ao tomar posse como presidente da República. Aquele que deveria ser o líder de todos os esforços nacionais para acabar com um flagelo que há dez longos meses exaure o espírito de milhões de seus compatriotas, ao contrário, é o primeiro de uma penca de sabotadores desses esforços. E com indisfarçável satisfação.

O País chega a 2021 perto da marca de 195 mil mortos pela covid-19. Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo devido a uma só causa. Angustiada, a Nação assiste ao início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em cerca de 50 países, alguns dos quais em condições econômicas mais adversas que as do Brasil, sem saber quando e como será vacinada. É como se aos que aqui vivem não bastassem as provações já impostas pela pandemia, agregando-se um presidente mequetrefe ao longo rol de infortúnios.

No sábado passado, ao ser questionado por um jornalista se sentia a pressão de ver outros países iniciarem a vacinação de seus nacionais, Bolsonaro reagiu dizendo “não dar bola para isso”, pois “ninguém o pressiona para nada”. É este presidente à prova de “pressões” – até mesmo a pressão para salvar vidas – que, como se não tivesse múltiplas crises para debelar, encontrou tempo para jogar futebol, debochar de adversários políticos, criticar os laboratórios que fabricam as vacinas e ofender a ex-presidente Dilma Rousseff, entre outros absurdos. Parece claro que Jair Bolsonaro está mais preocupado em desviar as atenções do País de sua irremediável incompetência do que em viabilizar o início de uma campanha de vacinação sem a qual mais brasileiros vão morrer e mais preso a este pesadelo estará o País.

Música | Beth Carvalho - O que é, o que é (Gonzaguinha)

 

Poesia | Marilia Gabriela - Esperança ( Mario Quintana)

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Merval Pereira - Sem, sem

- O Globo

Com o fim do auxílio emergencial, cuja última parcela começou a ser paga ontem, poderemos ter uma noção mais clara do fenômeno de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que já chegou a um índice de 40% em setembro, e caiu este mês para 35%, sempre segundo o Ibope. Teremos, além da geração “nem, nem” - nem estuda, nem trabalha - teremos os “sem, sem”- sem emprego e sem auxílio.

O pico de popularidade aconteceu depois do pagamento da quinta parcela de R$ 600, e a queda chegou depois que o auxílio foi cortado pela metade. Mas essa queda ainda deixa Bolsonaro em situação melhor do que há um ano, quando sua popularidade era de 29%, a pior avaliação de um presidente da República no primeiro ano de governo desde 1994. Collor, eleito na primeira eleição direta do país depois do golpe militar, teve aprovação pior no primeiro ano de mandato.

Entre os cidadãos mais pobres o auxílio emergencial mostrou-se resiliente, com a aprovação dos eleitores com renda familiar até um salário mínimo subindo de 19%, em dezembro de 2019, para 35% na pesquisa de setembro, o que levou seu índice de avaliação positiva para 40% naquela ocasião. Os eleitores com menor grau de instrução deram um aumento consistente da popularidade do presidente.

Entre os com até a oitava série do ensino fundamental, a avaliação de ótimo ou bom foi de 25% para 44%, enquanto entre os pesquisados com até a quarta série cursada a aprovação subiu de 26% para 40%. Esses índices, porém, caíram nos últimos três meses, justamente quando o auxílio foi reduzido.

O fim das medidas extraordinárias que o governo decretou para combater a pandemia da COVID-19, que levaram o déficit do país a se elevar para cerca de R$ 700 bilhões, terá um impacto político presumivelmente grande para o presidente Bolsonaro, com consequências sociais graves. Já temos 14 milhões de desempregados, com mais os cerca de 40 milhões que deixarão de receber o auxílio, teremos em janeiro uma situação social muito delicada no país. Os inscritos no Bolsa Família continuarão a receber o benefício, que não será aumentado como chegou a anunciar o governo.

Míriam Leitão - Mensageiro da morte

- O Globo

O presidente da República gosta da tortura. Ele a defende, tem prazer em falar dela e fustigar as vítimas. Foi o que Jair Bolsonaro fez ontem, mais uma vez, com a ex-presidente Dilma Rousseff. Ela foi brutalmente torturada aos 22 anos, sobreviveu e construiu sua vida. E agora, aos 73 anos, ouve do chefe de governo do país palavras de deboche e ironia sobre o seu sofrimento. É desumano e, além disso, é crime.

Bolsonaro comete crimes reiterados na cara do país e das instituições. Tortura é crime hediondo e ele tem prazer em falar disso, sempre tentando pôr em dúvida a palavra da vítima. Ele exalta torturadores e os tem por heróis. Bolsonaro defende a ditadura e já foi para a rua, como presidente da República, defender o fechamento do Congresso e do Supremo.

O que faz o país? Nada. Ele permanece presidente e continua usufruindo da sua extensa impunidade. Ele não foi cassado, em 2016, quando no plenário da Câmara elogiou o torturador a quem chamou de o “terror de Dilma Rousseff”. Deveria ter sido. Foi o que eu escrevi na época.

É crime. Mas também é sadismo. O prazer de sentir a dor do outro, de lembrar ao outro o seu sofrimento em meio a gargalhadas. Dilma o chamou de sociopata. E ele é. Somos governados por um sociopata. Dilma o chamou de fascista. E ele é. Dilma o chamou de “cúmplice da tortura e da morte”. E é o que ele tem sido ao longo de sua vida e de sua presidência.

Luiz Carlos Azedo - O ano mais longo

- Correio Braziliense

São inovações que podem evitar que a pandemia tome conta de 2021. Mas o que explica o sucesso das novas vacinas é o maciço investimento em pesquisas

Certo mesmo é que 2020 vai entrar 2021 adentro, por causa da pandemia do novo coronavírus, cuja segunda onda é o fantasma que ronda a Europa e os Estados Unidos às vésperas do ano-novo. Aqui, no Brasil, será um pouco pior, porque a vacina contra covid-19 está muito atrasada e, por isso mesmo, os efeitos predatórios das atitudes e decisões do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia serão também mais duradouros. Como já disse antes, quem deveria liderar a luta contra a doença sabota os esforços de prefeitos, governadores, dos sanitaristas e infectologistas, socorristas e enfermeiros, intensivistas e fisioterapeutas para controlar a doença e salvar vidas.

O próprio Ministério da Saúde é sabotado, sob comando de um general bem mandado, nomeado para o cargo por ser especialista em logística de transportes de tropas, armas e suprimentos, mas que se revelou o ministro mais incompetente da história da saúde pública no Brasil: Eduardo Pazuello. Provavelmente, ainda será condecorado e promovido a general de quatro estrelas por maus serviços prestados. Vivemos tempos distópicos.

Como não lembrar do jovem rapper Emicida, que acaba de lançar um documentário excepcional na Netflix: AmarElo, é tudo pra ontem. “Talvez seja bom partir do final/ Afinal, é um ano todo só de sexta-feira treze/ ‘Cê também podia me ligar de vez em quando/ Eu ando igual lagarta, triste, sem poder sair/ Aqui o mantra que nos traz o centro/ Enquanto lavo um banheiro, uma louça, querendo lavar a alma/ Na calma da semente que germina/ Que eu preciso olhar minhas menina”. O historiador Daniel AarãoReis, em artigo publicado no jornal O Globo (26/12), fez uma belíssima crítica sobre o filme, que se passa em torno de uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, lotado por pessoas da periferia paulista, que nunca haviam entrado naquele templo da nossa cultura.

Ricardo Noblat - A tempestade perfeita que poderá custar o mandato de Bolsonaro

- Blog do Noblat / Veja

Ele é uma ameaça à vida alheia

Se for o que resta para mostrar a que ponto chegou Bolsonaro, compare-se o seu comportamento com relação à vacinação em massa contra o vírus com o comportamento dos governantes mais autoritários do mundo, todos, como ele, de extrema-direita.

 O ditador da República da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, anunciou que não se vacinará porque a Covid-19 já o pegou faz algum tempo – como se não pudesse pegá-lo outra vez. Mas a imunização no seu país começou uma semana antes do previsto.

Até abril serão vacinadas 1,2 milhão de pessoas. Numa segunda etapa, mais 5,5 milhões. Na Hungria do primeiro-ministro Viktor Orbán, um dos poucos chefes de Estado a comparecer à posse de Bolsonaro, a vacinação começou no último sábado.

A Polônia tem um governo nacionalista conservador admirado pelo presidente brasileiro. Pois bem: ali, ontem, os dois líderes dos partidos rivais Plataforma Cívica (liberal) e Lei e Justiça (conservador) foram filmados vacinando-se juntos.

Ontem também, os países da Comunidade Econômica Europeia compraram mais 100 milhões de doses da vacina da Pfizer. Em colapso desde a explosão do seu porto em Beirute, o Líbano comprou à Pfizer duas milhões de doses de vacina.

Bruno Boghossian – Emporcalhando a Presidência

- Folha de S. Paulo

Provocações hediondas e exaltação da tortura são incompatíveis com o exercício da política

Jair Bolsonaro já era um político indigno do cargo que ocupava em 1999, quando dava entrevistas para defender atrocidades como assassinatos políticos e agressões a prisioneiros. "Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso", declarou o então deputado ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes.

A propaganda continuou nas duas décadas seguintes. O parlamentar ganhava projeção ao glorificar o regime militar e recomendar a execução de rivais. "O erro da ditadura foi torturar e não matar", repetiu, dois anos antes de ser eleito presidente.

O país escolheu um apologista da tortura para comandar o Palácio do Planalto. Depois de fazer fama com aquelas declarações, ele passou a emporcalhar a Presidência da República com um repertório atualizado de barbaridades –até durante as férias.

Antes de embarcar para o Guarujá (SP), na segunda (28), Bolsonaro lançou dúvidas sobre a tortura que a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu na ditadura. "Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela", disse. "Não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio-X."

Raphael Di Cunto - Os riscos da aposta de Bolsonaro na Câmara

- Valor Econômico

Independentes” serão decisivos para votações pós-eleição

O presidente Jair Bolsonaro tem apostado alto ao mobilizar o governo para eleger o líder do PP, Arthur Lira (AL), presidente da Câmara. Há promessa - e entrega- de verbas orçamentárias, cargos e até ministérios para quem apoiar seu candidato. Não são poucos os aliados dele que alertam que tal aposta pode dificultar a governabilidade nos dois anos finais de seu mandato e esgarçar a relação com os deputados.

Como toda aposta de risco, o retorno, é claro, pode ser muito grande. Um aliado no comando da Câmara fará andar a agenda conservadora de costumes que o elegeu e com a qual ele pretende sustentar sua reeleição. Ao presidente interessa que o debate tome conta da sociedade, colocando em segundo plano a pandemia, a morte de milhares de pessoas e a economia capenga.

O atual presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), barrou parte dessas propostas, mas menos do que seu contundente discurso para agradar os partidos de esquerda faz parecer. É verdade que ele segurou a reação à flexibilização do aborto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), impediu o debate sobre o Escola Sem Partido e o ensino doméstico, defendeu a ciência e a vacina e segurou parte da agenda armamentista, mas, quando estava em busca de aproximação com Bolsonaro, Maia levou direto ao plenário o projeto que flexibiliza a lei de trânsito e o porte de arma na propriedade rural.

Lígia Bahia - Vacina antidesfaçatez

- O Globo

Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas somadas a eventuais viroses emergentes

Oportunidades desperdiçadas para controlar a disseminação da Covid-19 em 2020 serão transferidas, com acréscimo de dificuldades, para o próximo ano. Históricas experiências do Brasil — desde as campanhas contra a febre amarela, DST/aids, dengue, chicungunha e zica — foram substituídas por charlatanismo, ameaças à Organização Mundial da Saúde e descuido proposital com a organização da prevenção, da vigilância de casos e do atendimento adequado a doentes. Desprezo pelas recomendações científicas, corte de recursos para pesquisa, presença irrelevante ou aliada automaticamente aos países ricos nos debates internacionais sobre o acesso universal ao conhecimento e inovações tecnológicas nos impediram de compartilhar plenamente o legado de 2020: ampla utilização de intervenções não farmacológicas para eliminar a transmissão de uma doença respiratória e produção rápida de testes e vacinas.

Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.

Hélio Schwartsman – Apostas erradas

- Folha de S. Paulo

Faria mais sentido assegurar que o país tivesse acesso ao máximo possível de doses do maior número possível de vacinas

Se há algo que une militares de direita a sanitaristas de esquerda é a preocupação, às vezes obsessiva, com a transferência de tecnologia. É claro que é melhor ser capaz de fabricar seus próprios imunizantes do que não ser, em especial se houver necessidade de revacinações periódicas como parece ser o caso da Covid-19. Mas eu receio que, ao buscar primariamente acordos que previssem a transferência de tecnologia, o Brasil tenha limitado demais suas apostas.

O governo federal jogou tudo no imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que deverá ter produção local pela Fiocruz, e o governo paulista investiu apenas na Coronavac, parceria entre chineses e o Instituto Butantan.

Vinicius Torres Freire – O fracasso na economia e na vacina

- Folha de S. Paulo

Congresso evitou fracasso final do bolsonarismo na economia, mas não na vacina

Jair Bolsonaro anda inquieto. É assim quando seu poder ou sua popularidade estão ameaçados; quando aumenta o risco de que sua família acabe na cadeia. Então passa a dizer mais atrocidades do que de costume contra a democracia, a razão, a decência e a humanidade.

Nos últimos dias tenta arrumar um bode expiatório para justificar a inexistência de vacinas e escamotear o desastre com uma cortina de fumaça, com o bafo fumegante da besta fera. Disse que quer facilitar o acesso a armas de fogo com o objetivo de facilitar insurreições armadas, por exemplo contra João Doria. Debochou, rindo como um psicopata, da tortura de Dilma Rousseff. Etc.

Cerca de três quartos dos brasileiros querem se vacinar. É difícil enganar tanta gente com fantasias lunáticas e propaganda criminosa. Há o risco de a incompetência e os crimes ficarem muito evidentes.

Desde meados do ano entrou em pane o “parlamentarismo branco”, um improviso que fez as vezes de governo no lugar de Bolsonaro. Se essa geringonça política estivesse funcionando, talvez até se pudesse inventar uma gambiarra parlamentar para a compra de vacinas, uma atribuição clara do ministério da Saúde, que, porém, não passa de um almoxarifado a cargo de uma ordenança incapaz. Agora não temos nem a geringonça nem ministério. Sobra então o bolsonarismo puro no poder.

Cristiano Romero - Por que o Brasil não é uma nação?

- Valor Econômico

Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social

O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.

Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.

Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.

Elio Gaspari - O grande espetáculo de Trump

- O Globo / Folha de S. Paulo

Ele passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando

Faltam três semanas para o dia em que Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. Com a pandemia e Donald Trump, não se sabe direito como as coisas funcionarão. Não se sabe sequer se ele irá à cerimônia.

Numa época tomada pela Covid-19, pelas vacinas e por Jair Bolsonaro, junta-se um espetáculo histórico: o comportamento de Trump nos últimos dias de seu governo.

Recusando-se a aceitar o resultado das urnas, o atual presidente entrou na moldura de desespero e desequilíbrio de Richard Nixon nos dias que antecederam sua renúncia, em agosto de 1974. Ele estava bebendo demais, brigava com a mulher e chamou o secretário de Estado para rezar. O chefe de seu gabinete temeu que ele se matasse. Estava entendido que Nixon destrambelhara. Temeu-se que, num surto, ele resolvesse usar armas nucleares contra algum inimigo. Por isso, se ele tentasse mexer nas bombas, a ordem precisaria ser confirmada pelo secretário da Defesa. Ela nunca foi dada. Esses fatos, contudo, começaram a sair dos bastidores aos poucos. Para consumo geral, ficou a imagem do presidente deixando a Casa Branca com um grande sorriso e os braços erguidos.

Sergio Amaral* - Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar

- O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.