Em
2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas somadas a eventuais
viroses emergentes
Oportunidades
desperdiçadas para controlar a disseminação da Covid-19 em 2020 serão
transferidas, com acréscimo de dificuldades, para o próximo ano. Históricas
experiências do Brasil — desde as campanhas contra a febre amarela, DST/aids,
dengue, chicungunha e zica — foram substituídas por charlatanismo, ameaças à
Organização Mundial da Saúde e descuido proposital com a organização da
prevenção, da vigilância de casos e do atendimento adequado a doentes. Desprezo
pelas recomendações científicas, corte de recursos para pesquisa, presença
irrelevante ou aliada automaticamente aos países ricos nos debates
internacionais sobre o acesso universal ao conhecimento e inovações
tecnológicas nos impediram de compartilhar plenamente o legado de 2020: ampla
utilização de intervenções não farmacológicas para eliminar a transmissão de
uma doença respiratória e produção rápida de testes e vacinas.
Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.
Cada
sociedade tem uma faixa, maior ou menor, de fanáticos, de pessoas que falam e
agem sem considerar consequências nefastas de suas atitudes. No transcorrer do
ano, a dose de dissimulação e irresponsabilidade foi excessiva e constante. O
presidente Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1.015, em 17 de dezembro,
prevendo o gasto de R$ 20 bilhões com a vacinação, cuja justificativa técnica
baseia-se no “cumprimento do dever do Estado de garantir a todos o direito à
saúde” e no contato (memorandos de entendimento) com “empresas
desenvolvedoras”. Poucos dias depois, declarou não aceitar pressão, não ter
pressa e que “os interessados em vender para a gente” devem se apresentar.
O
ministro da Economia, no fim de outubro, cometeu um erro crasso ao afirmar a
diminuição da pandemia e a retomada da economia. Dois meses depois, o
mandatário — que não prorrogou o auxílio emergencial no contexto de aumento do
desemprego e de pessoas vivendo em situação de pobreza — disse que só a
vacinação “em massa” pode sustentar a recuperação econômica.
Ora
tem, ora não tem pandemia; ora a saúde é direito, ora é uma coisa que se compra
se alguém quiser vender. O Poder Executivo federal mente descaradamente. Está
mais que comprovada a indisposição de ocupantes de cargos estratégicos para
resolver a crise sanitária. A Presidência da República e seus ministérios se
recusam a processar democraticamente divergências e conflitos. Um quadro
institucional incapacitado para diferenciar verdade, ou pelo menos
verossimilhança, da falsidade requer atenção urgente de órgãos legislativos,
judiciários, estados e prefeituras. Constata-se uma tendência assustadora de
condenar idosos, trabalhadores de baixa renda, negros e indígenas à categoria
de semimortos. Divergências entre quem considera que as políticas implementadas
foram instáveis e ineficazes e os que as avaliam como excelentes podem ser
julgadas, em 2021, pelo confronto com princípios básicos, como o direito à
saúde e à vida. A administração de interesses, valores e ambições diferenciados
requer profundo respeito às esperanças por justiça.
Um SUS grande, potente, efetivamente universal e de qualidade não é um procedimento eletivo ou substitutivo, um estepe para usar quando fura o auxílio pecuniário e se apela para a vacina. É essencial para que nos tornemos perene e progressivamente mais iguais.
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