DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Os estudos sobre o sindicalismo reformista (“amarelo”) e a elaboração de uma política social-trabalhista no Brasil, nas três primeiras décadas do século passado, são muito raros. Na maioria dos casos, procurou-se associar a história do movimento sindical e operário, antes de 1930, à atuação de militantes anarquistas ou anarcossindicalistas, numa inspiração que a pouco e pouco foi se revelando anticomunista. Daí, por exemplo, se vincular ao anarquismo a espontaneidade, o anticapitalismo e a independência de classe, numa fase já consagrada pela historiografia como a “fase heroica” do movimento operário e sindical brasileiro. Aos olhos dessa historiografia, o panorama sindical da classe operária apresentar-se-ia sob a hegemonia da influência anarquista que, por sua vez, seria combatida durante toda a década de vinte pelo recrudescimento do aparelho repressivo de Estado e pelas orientações político-sindicais assumidas pelo Partido Comunista do Brasil [1].
Sem o embargo dessa arraigada tradição historiográfica, algumas pesquisas buscaram posteriormente apontar para a existência de outras correntes que haveriam se agitado no cenário social-trabalhista brasileiro, com o objetivo de organizar a classe operária e ajudá-la na conquista de suas reivindicações [2]. Contudo, além de se restringirem na prática às duas primeiras décadas do século passado, estes trabalhos pecaram tanto pelo viés economicista e societal, com que pretenderam explicar a existência daquelas correntes [3], como por manterem quase intacta a análise do Estado republicano, legada pela historiografia do anarquismo. Procurando explicações puramente econômicas (determinações setoriais da economia) ou societais (origem e composição da mão de obra fabril) para a presença das correntes diferenciadas da organização sindical e conservando a mesma visão do Estado republicano (Estado oligárquico/hegemonia da burguesia cafeeira/tratamento policial dispensado à classe operária), os novos trabalhos avançaram muito pouco na determinação precisa do panorama sindical brasileiro, antes de 1930, e da forma de dominação burguesa vigente na Primeira República.
Interessado, também, no estudo das origens do reformismo social-trabalhista dos começos da República no Brasil, o nosso ponto de partida foi, contudo, bem outro: primeiro, discutimos as vicissitudes da via assumida pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a especificidade da forma de domínio burguês disso resultante, para, só então, empreendermos a análise da prática sindical e política das forças sociais em presença e elas várias correntes que atuaram no interior do movimento operário. Neste sentido, procuramos inicialmente caracterizar a particularidade da transição capitalista no país, a partir do fim do século XIX (sua via reacionária, “prussiana”, de cima para baixo) e a forma de dominação burguesa daí resultante (Estado liberal-oligárquico), como sendo incapazes de suportarem a inserção da pequena burguesia urbana e das massas trabalhadoras no seio das instituições políticas.
Emerge dessa primeira constatação a nossa principal hipótese de trabalho: a fraqueza do sistema de alianças da burguesia brasileira. Fraqueza responsável pelas intermitentes manifestações de revolta da pequena burguesia civil e militar na cena republicana bem como pelos esparsos acenos dirigidos ao proletariado urbano por setores do aparelho de Estado, em certas conjunturas de crise na história da Primeira República. O nosso intuito era o de buscar a regularidade de certas conexões que se estabelecem, em períodos de crise política, entre governo e sindicatos operários — sem excluir, é claro, a movimentação de outras forças sociais (a burguesia comercial e industrial, os anarquistas, os comunistas, os tenentes etc.) frente a estas conexões.
Pois, é nossa convicção que a fragilidade do sistema de alianças da classe dominante como um todo tem muito a ver com as orientações reformistas da política republicana neste período, a par de mudanças que vão se processando no interior do movimento sindical urbano. Nos anos vinte, com o aprofundamento das vicissitudes políticas da República Velha, um projeto governamental de controle e cooptação da classe operária ganha realce, em parelhas com o avanço da orientação reformista entre as associações operárias do Rio de Janeiro.
A constatação, no entanto, da existência de tais indícios não significa atestar necessariamente a sua efetividade; porquanto a sua presença e viabilização ficaram muito a depender da sorte de cada conjuntura: deflagrados os movimentos conspiratórios, amainada a tempestade revolucionária, muda a disposição governamental e o sindicalismo sofre os reveses da mudança.
Mas o que importa destacar disso tudo é o isolamento de um conjunto de elementos que se atualizaria com todo vigor na década de 1930: crise de hegemonia, cooptação política das massas urbanas, legislação social-trabalhista, sindicalismo “populista” etc., revisando a legenda da hegemonia anarquista no movimento operário, bem como o tradicional diagnóstico da hegemonia da burguesia cafeeira na Primeira República brasileira.
Para isso, este trabalho se divide em três partes: um primeiro capítulo é dedicado a montagem do projeto de reformismo social-trabalhista, na terceira década do século passado, estudando os passos da criação da legislação social, seus autores, as agências encarregadas de cuidar dessa legislação, a interferência do governo, bem como as motivações conjunturais de sua criação. Um segundo capítulo trata do perfil da pequena burguesia reformista da Primeira República, através da exemplaridade da trajetória de Joaquim Pimenta. E finalmente, um terceiro capítulo é destinado a oferecer um amplo panorama das associações operárias e sindicais de tendência reformista no Rio de Janeiro, seus principais líderes, suas relações com o governo, a polícia e os trabalhadores urbanos.
Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco. Esta é a introdução ao livro Estado e classe operária no Brasil (Recife, 2010).
Notas
Os estudos sobre o sindicalismo reformista (“amarelo”) e a elaboração de uma política social-trabalhista no Brasil, nas três primeiras décadas do século passado, são muito raros. Na maioria dos casos, procurou-se associar a história do movimento sindical e operário, antes de 1930, à atuação de militantes anarquistas ou anarcossindicalistas, numa inspiração que a pouco e pouco foi se revelando anticomunista. Daí, por exemplo, se vincular ao anarquismo a espontaneidade, o anticapitalismo e a independência de classe, numa fase já consagrada pela historiografia como a “fase heroica” do movimento operário e sindical brasileiro. Aos olhos dessa historiografia, o panorama sindical da classe operária apresentar-se-ia sob a hegemonia da influência anarquista que, por sua vez, seria combatida durante toda a década de vinte pelo recrudescimento do aparelho repressivo de Estado e pelas orientações político-sindicais assumidas pelo Partido Comunista do Brasil [1].
Sem o embargo dessa arraigada tradição historiográfica, algumas pesquisas buscaram posteriormente apontar para a existência de outras correntes que haveriam se agitado no cenário social-trabalhista brasileiro, com o objetivo de organizar a classe operária e ajudá-la na conquista de suas reivindicações [2]. Contudo, além de se restringirem na prática às duas primeiras décadas do século passado, estes trabalhos pecaram tanto pelo viés economicista e societal, com que pretenderam explicar a existência daquelas correntes [3], como por manterem quase intacta a análise do Estado republicano, legada pela historiografia do anarquismo. Procurando explicações puramente econômicas (determinações setoriais da economia) ou societais (origem e composição da mão de obra fabril) para a presença das correntes diferenciadas da organização sindical e conservando a mesma visão do Estado republicano (Estado oligárquico/hegemonia da burguesia cafeeira/tratamento policial dispensado à classe operária), os novos trabalhos avançaram muito pouco na determinação precisa do panorama sindical brasileiro, antes de 1930, e da forma de dominação burguesa vigente na Primeira República.
Interessado, também, no estudo das origens do reformismo social-trabalhista dos começos da República no Brasil, o nosso ponto de partida foi, contudo, bem outro: primeiro, discutimos as vicissitudes da via assumida pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a especificidade da forma de domínio burguês disso resultante, para, só então, empreendermos a análise da prática sindical e política das forças sociais em presença e elas várias correntes que atuaram no interior do movimento operário. Neste sentido, procuramos inicialmente caracterizar a particularidade da transição capitalista no país, a partir do fim do século XIX (sua via reacionária, “prussiana”, de cima para baixo) e a forma de dominação burguesa daí resultante (Estado liberal-oligárquico), como sendo incapazes de suportarem a inserção da pequena burguesia urbana e das massas trabalhadoras no seio das instituições políticas.
Emerge dessa primeira constatação a nossa principal hipótese de trabalho: a fraqueza do sistema de alianças da burguesia brasileira. Fraqueza responsável pelas intermitentes manifestações de revolta da pequena burguesia civil e militar na cena republicana bem como pelos esparsos acenos dirigidos ao proletariado urbano por setores do aparelho de Estado, em certas conjunturas de crise na história da Primeira República. O nosso intuito era o de buscar a regularidade de certas conexões que se estabelecem, em períodos de crise política, entre governo e sindicatos operários — sem excluir, é claro, a movimentação de outras forças sociais (a burguesia comercial e industrial, os anarquistas, os comunistas, os tenentes etc.) frente a estas conexões.
Pois, é nossa convicção que a fragilidade do sistema de alianças da classe dominante como um todo tem muito a ver com as orientações reformistas da política republicana neste período, a par de mudanças que vão se processando no interior do movimento sindical urbano. Nos anos vinte, com o aprofundamento das vicissitudes políticas da República Velha, um projeto governamental de controle e cooptação da classe operária ganha realce, em parelhas com o avanço da orientação reformista entre as associações operárias do Rio de Janeiro.
A constatação, no entanto, da existência de tais indícios não significa atestar necessariamente a sua efetividade; porquanto a sua presença e viabilização ficaram muito a depender da sorte de cada conjuntura: deflagrados os movimentos conspiratórios, amainada a tempestade revolucionária, muda a disposição governamental e o sindicalismo sofre os reveses da mudança.
Mas o que importa destacar disso tudo é o isolamento de um conjunto de elementos que se atualizaria com todo vigor na década de 1930: crise de hegemonia, cooptação política das massas urbanas, legislação social-trabalhista, sindicalismo “populista” etc., revisando a legenda da hegemonia anarquista no movimento operário, bem como o tradicional diagnóstico da hegemonia da burguesia cafeeira na Primeira República brasileira.
Para isso, este trabalho se divide em três partes: um primeiro capítulo é dedicado a montagem do projeto de reformismo social-trabalhista, na terceira década do século passado, estudando os passos da criação da legislação social, seus autores, as agências encarregadas de cuidar dessa legislação, a interferência do governo, bem como as motivações conjunturais de sua criação. Um segundo capítulo trata do perfil da pequena burguesia reformista da Primeira República, através da exemplaridade da trajetória de Joaquim Pimenta. E finalmente, um terceiro capítulo é destinado a oferecer um amplo panorama das associações operárias e sindicais de tendência reformista no Rio de Janeiro, seus principais líderes, suas relações com o governo, a polícia e os trabalhadores urbanos.
Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco. Esta é a introdução ao livro Estado e classe operária no Brasil (Recife, 2010).
Notas
[1] Cf. MUNAKATA, Kasumi. Origens do sindicalismo burocrático no Brasil. Comunicação apresentada à XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em julho de 1979, em Fortaleza-CE, e O papel do revolucionário é fazer a revolução. Campinas, mimeografado, 1979. Também DE DECCA, Edgar S. 1930. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1991
[2] Cf. FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1976; MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas e imigrantes e o movimento operário brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, e SILVA, Lígia Maria Osório. Movimento sindical operário na Primeira república. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UNICAMP, 1977
[3] Cf. FAUSTO, Boris. Ib., p. 52-3, e SILVA, Lígia Maria Osório. Ib., p. 95 e passim.
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