- O Estado de S.Paulo
Acabar com eles, como pretende o governo federal, é inconstitucional
A Constituição de 1988 representa a etapa final de um processo de redemocratização do País. Foi o documento jurídico-político que selou esse processo, declarando formalmente que somos um Estado Democrático de Direito republicano e prevendo instrumentos para que isso se materialize de fato. Nessa linha, a opção do constituinte originário foi por uma democracia participativa, ou seja, na qual o poder é exercido por representantes eleitos pelo povo, mas também diretamente, além de compreender mecanismos de participação permanente da sociedade nas decisões políticas e nos atos da administração pública.
Vejamos a diferença entre a redação da Constituição de 1969, que dizia no parágrafo único do artigo 1.º que “todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido”, para a da nossa atual Carta: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Sutil, não? Mas extremamente significativa. No regime anterior, o povo delegava o poder, no atual, ele delega, mas também exerce diretamente. E quais os instrumentos previstos para esse exercício direto? Os que vêm imediatamente à cabeça são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis. Todos importantíssimos para que o povo fale por si, sem intermediários, em momentos pontuais.
Mas a Constituição prevê também instrumentos que permitem o exercício de fala permanente e contínuo, os conselhos, formados por sociedade civil e governo, que se sentam à mesma mesa para pensar, discutir e deliberar sobre políticas públicas. São espaços democráticos de participação e controle social. Independentemente de terem natureza consultiva ou deliberativa, são sempre ambientes em que governo e sociedade, em pé de igualdade, debatem e buscam o bem comum.
Claro que pode haver divergências sobre os caminhos para atingir o bem comum e até sobre o que é o bem comum. E normalmente há! É isso que traduz a importância e justifica a necessidade dos conselhos. Divergência, debate, busca por consenso, isso dá muito trabalho. Mas é o que define um processo como democrático.
Fui secretária de Assistência Social do Município de São Paulo por quatro anos e assistência social tem por obrigação constitucional conselhos nas três esferas de governo. E conselhos deliberativos, o que significa que tive longos e sérios embates, muitas conversas e estratégias de convencimento. Convenci algumas vezes, fui convencida outras. Algumas vezes perdi sem ter-me convencido de que estava errada. Mas isso é democracia. Eu, representante do governo à época, submetida ao controle social.
Tenho mil críticas e questionamentos acerca do funcionamento e representatividade dos conselhos. Acho que temos de pensar seriamente em como aprimorá-los. Mas acabar com eles, como pretende o governo federal, é absolutamente inconstitucional. Neste ano o STF foi provocado a se manifestar sobre o Decreto Presidencial 9.759/2019, que extinguia todos os conselhos, comitês, comissões, grupos e outros tipos de colegiados ligados à administração pública federal, criados por decreto ou ato normativo, incluídos os mencionados em lei que não tivessem detalhada suas competência e composição. No julgamento da ADI n.º 2.161 a Corte afastou liminarmente a possibilidade de extinção, por ato unilateral do chefe do Executivo, de colegiado cuja existência esteja prevista em lei, ainda que ausente expressa referência sobre sua competência ou composição. Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que concediam integralmente a cautelar para impedir a extinção mesmo dos colegiados não previstos em lei.
A questão voltará a ser discutida quando do julgamento definitivo. Entendo, assim como parte dos ministros, que sem uma justificativa consistente a extinção de qualquer conselho por decreto, previsto ou não em lei, é inconstitucional. E acredito que o mesmo entendimento deva valer para situações em que não se extingue, mas se “desidrata” um conselho, retirando-lhe a força e pluralidade dos representantes da sociedade civil.
Tomemos como exemplo o Decreto Presidencial n.º 9.926/2019, que diminuiu de 31 para 14 o número de membros do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Perderam assento representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Federal de Medicina, do Conselho Federal de Psicologia, do Conselho Federal de Serviço Social, do Conselho Federal de Enfermagem, do Conselho Federal de Educação, da União Nacional dos Estudantes e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, além de um jornalista, um antropólogo, um representante da classe artística e dois representantes de entidades do terceiro setor. Com isso se eliminou a participação da sociedade civil. A edição de um decreto como esse configura, no meu entender, um “comportamento inconstitucional” do chefe da nação. Explico.
Em sua obra A Força Normativa da Constituição, o jurista alemão Konrad Hesse alerta para o fato de a Constituição ter força normativa quando os Poderes e a sociedade civil assimilam o seu “espírito” e caminham no sentido de concretizá-la. Quando há “vontade de constituição”, ou seja, quando conteúdo e práxis constitucional andam de mãos dadas. No início deste artigo afirmei que a Constituição de 1988 é a consolidação de um processo de redemocratização do País, portanto, tem um “espírito” extremamente pluralista e democrático, que deve ser respeitado por todos, especialmente pelo presidente da República. Governar na democracia dá trabalho. Muito trabalho. Mas foi isso que escolhemos para a sociedade brasileira. E essa escolha tem de ser observada e respeitada, sob pena de inconstitucionalidade.
*Advogada, professora de Direito Constitucional na PUC-SP e na Uninove, foi secretária de Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo e secretária de Assistência Social do município de São Paulo
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