Eleição municipal não pode ignorar agenda climática
O Globo
Municípios são responsáveis pela ocupação do
solo, fator crítico para prevenir efeitos de enchentes ou secas
Os efeitos das mudanças climáticas já fazem parte do dia a dia dos brasileiros há algum tempo. Em maio, o país se comoveu com o drama dos gaúchos ante a devastação sem precedentes causada por chuvas inclementes, que mataram mais de 180 moradores, deixaram cidades submersas, arrasaram a infraestrutura e impuseram prejuízos bilionários. Nos últimos meses, em meio a secas severas e temperaturas abrasadoras, incêndios têm se alastrado, destruindo vegetações e causando transtornos à população. Seria de esperar que tal realidade fizesse das mudanças climáticas um dos principais temas da campanha municipal país afora. Não é o que acontece, porém.
Como mostra a
série de reportagens do GLOBO “Cidades resilientes”, os candidatos a
prefeito parecem passar ao largo da preocupação, apesar de medidas de adaptação
e mitigação dos efeitos do aquecimento global dizerem respeito sobretudo à
esfera municipal. Todo candidato deveria tratar do assunto em suas propostas e
planos de governo. Mas, com exceção do Sul, onde as cicatrizes das chuvas ainda
se fazem presentes, a reportagem revela que a maior parte dos programas trata o
tema de forma vaga, relegando a segundo plano medidas de longo prazo.
As promessas mais comuns dizem respeito a
ações de Defesa Civil (sistemas de alerta), obras de drenagem, criação de
parques ou plantio de árvores. Não que tais iniciativas sejam pouco
importantes. Mas a emergência climática exige mais. Candidatos deveriam
explicar com clareza suas políticas para evitar a ocupação de áreas suscetíveis
a desastres (como encostas e margens de rios) e estratégias para reassentar
famílias vulneráveis. Mesmo impopulares, são providências incontornáveis para
minimizar os efeitos das tragédias resultantes de eventos climáticos extremos,
mais e mais frequentes.
Responsáveis pela ordenação do uso do solo,
os municípios arcam com responsabilidade fundamental na prevenção de desastres.
A tragédia no Rio Grande do
Sul mostrou que a ocupação das cidades precisa ser repensada.
Não há como impedir que rios transbordem ou encostas deslizem sob chuvas
torrenciais, mas é possível reduzir os efeitos das tragédias planejando melhor
a ocupação. Certas áreas, pelos riscos óbvios, não podem receber moradias. Mas
só 13% das cidades brasileiras têm plano específico para reduzir perigo de
desastres, revelou levantamento da Associação de Pesquisa Iyaleta. Menos de um
terço dispõe de plano diretor com prevenção a inundações. Sistemas de alerta
estão em apenas 8%.
Num cenário de eventos extremos mais
intensos, os candidatos deveriam apresentar propostas que contemplem
reflorestamento de encostas, arborização de ruas, refrigeração dos transportes
e de escolas, preparação das redes de saúde, com atenção sobretudo a crianças e
idosos. Não se trata mais de projeção para o futuro. Em pleno inverno, cidades
brasileiras têm registrado temperaturas acima dos 40 graus.
As campanhas não podem ser tão desconectadas
da realidade. Não é improvável que chuvas torrenciais, ondas de calor, secas
prolongadas e incêndios devastadores aconteçam nas próximas semanas, meses ou
anos. As cidades precisam estar preparadas para dar respostas. Na campanha, os
candidatos podem até fugir do tema. Mas, uma vez eleitos, certamente serão
expostos a ele. Não poderão alegar surpresa.
Nota conjunta com Colômbia sobre a eleição
venezuelana envergonha Brasil
O Globo
A esta altura, já está claríssimo que Maduro
fraudou o pleito e precisa entregar o poder a quem venceu
Desde 28 de julho, quando os venezuelanos
foram às urnas, têm sido tíbias as manifestações do presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva, de seu assessor internacional Celso Amorim e do Itamaraty sobre a fraude
cometida pelo ditador Nicolás
Maduro para se perpetuar no poder. No último fim de semana, a
condescendência com Maduro alcançou um patamar constrangedor na nota conjunta
emitida por Brasil e Colômbia.
Quase um mês depois de Maduro perder a
eleição e cometer uma fraude vergonhosa, está claríssimo que ele precisa
entregar o poder a quem venceu. Em vez de exigir isso, o comunicado conjunto
repete a ladainha expressa pelo governo brasileiro desde a madrugada de 29 de
julho, quando, horas depois do fechamento das urnas, o Conselho Nacional
Eleitoral (CNE), controlado pelo regime chavista, declarou Maduro vencedor sem
divulgar os boletins de urna, conhecidos em espanhol como “atas”. Na última
semana, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano, também dominado pelo
chavismo, validou a fraude sem sequer fingir examinar uma única ata. A nota
conjunta limita-se a exigir a apresentação das atas para que o resultado possa
ser aferido: “Brasil e Colômbia tomam nota da decisão do TSJ sobre o processo
eleitoral. Reiteram que continuam a aguardar a divulgação, pelo CNE, das atas
desagregadas por seção de votação”.
A esta altura, diversas apurações
independentes confirmaram a vitória do oposicionista Edmundo González com base
nas atas que vieram a público. Organismos internacionais e organizações
independentes de monitoramento eleitoral denunciaram a fraude de Maduro. Mas
assessores de Lula continuam a defender a postura ambígua, argumentando ser
importante manter um canal de comunicação aberto com o regime venezuelano, até
para que Maduro entregue o poder de modo pacífico. Os fatos, porém, teimam em
demonstrar que ele não tem a menor intenção de ceder.
O contraste com a reação de Argentina, Costa
Rica, Chile, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru,
República Dominicana e Uruguai é vexaminoso. Juntos, os 11 países condenaram a
pantomima ridícula do Judiciário venezuelano. “Rechaçamos categoricamente o
anúncio do TSJ”, afirma o texto conjunto. Em separado, o Departamento de Estado
americano diz que a decisão “carece de toda credibilidade, dadas as provas
contundentes de que González recebeu o maior número de votos em 28 de julho”.
Desde a eleição, a repressão à oposição
venezuelana tem sido cruel, e Maduro não dá sinal de estar disposto a negociar
transição nenhuma. Enquanto a ditadura endurece, o Itamaraty segue o mesmo tom
brando, sem nada conseguir. É verdade que até agora o governo brasileiro não
reconheceu o resultado fraudado. Mas é pouco. Pior do que não ter a menor
influência na política venezuelana — ao contrário do que tenta dar a entender a
dupla Lula-Amorim —, é o Brasil passar a imagem de conivente com um ditador sanguinário.
Intervenção no gás gera despesa e insegurança
jurídica
Valor Econômico
Ao influir na eficiência e na velocidade da produção de petróleo, o decreto interfere nos planos de desenvolvimento empresariais já firmados
O preço do gás natural pago pelos usuários no
Brasil é alto. A Lei do Gás, aprovada em 2021 pelo governo de Jair Bolsonaro,
prometia um “choque de energia barata”, segundo o então ministro da Economia
Paulo Guedes. Não deu certo, e o governo Lula faz agora nova tentativa de
reduzir preços, com espírito bem diferente da lei anterior, intervindo nos
preços nos setores da infraestrutura do insumo e na produção do gás natural. As
medidas interferem nos planos das empresas e têm ingredientes suficientes para
deslanchar batalhas judiciais à frente.
O problema do preço do gás é real e um peso
para a indústria. O preço doméstico é de US$ 21 por milhão de BTUs, quase dez
vezes os US$ 2,50 pagos pelos consumidores nos EUA e mais do que o dobro dos
US$ 9 cobrados dos europeus (dados da CNI; Valor, ontem). Cerca de 70% da
oferta de gás natural é proveniente da Petrobras, e um estudo do governo
indicou que 46% do custo pedido pelo insumo decorre da cobrança da estatal pelo
uso de gasodutos marítimos de escoamento e tratamento do gás. A extração compõe
apenas 14% do custo total e o transporte e a distribuição, 20%.
Grande parte do gargalo de custos e oferta,
então, se concentra na Petrobras e suas práticas monopolistas. A Lei do Gás,
que apostava na “promoção da livre iniciativa para exploração de atividades
concorrenciais”, conseguiu alguma abertura nas atividades periféricas do gás,
mas não prosperou na redução dos preços e tampouco no aumento da oferta. Para
um governo que desde seu início imiscuiu-se nos assuntos da Petrobras a ponto
de demitir seu presidente, o petista Jean Paul Prates, seria natural que buscasse
a saída para os problemas em negociação com a empresa. No entanto, o presidente
Lula e seu ministro da Energia, Alexandre Silveira, foram por outro caminho.
O objetivo dos decretos que compõem o Plano
de Transição Energética, mas que de imediato tratam apenas de petróleo e gás, é
o maior controle sobre as atividades. Um decreto revogou a criação do Comitê
Técnico para o Desenvolvimento do Mercado de Combustíveis, que, entre outras
atribuições, tratava do processo de venda dos ativos de refino da estatal, já
definitivamente sepultada.
Um dos pontos centrais do decreto 12.153,
publicado ontem, e que modifica o decreto 10.712, que regulamentou a Lei do
Gás, refere-se aos percentuais de injeção de gás na exploração de petróleo.
Pelo menos 50% do gás natural, subproduto da exploração, é reinjetado. A
reinjeção aumenta a eficiência e a velocidade da extração do óleo. A meta é
ampliar a oferta de gás que sai dos poços diminuindo seu uso no processo de
obtenção do petróleo.
Ao influir na eficiência e na velocidade da
produção de petróleo, o decreto interfere nos planos de desenvolvimento
empresariais já firmados com multinacionais e empresas domésticas. O decreto é
taxativo, ao dar poderes à Agência Nacional do Petróleo (ANP) de, após ouvir
empresas e examinar viabilidade técnica-econômica, determinar “a redução da
reinjeção de gás natural ao mínimo necessário, inclusive com o estabelecimento
do volume máximo de gás natural a ser reinjetado”. O Ministério de Minas e
Energia disse que o decreto vale só para novos contratos, mas não há uma linha
sobre isso no dispositivo legal. Ao contrário. Registra o decreto que “quando
identificar a possibilidade de aumento do volume de produção de gás natural, a
ANP determinará, aos atuais operadores dos respectivos campos, a revisão dos
planos e projetos de desenvolvimento”. Além disso, “caso o operador do campo
não atenda ao disposto... a ANP adotará as medidas legais e contratuais
cabíveis”.
O decreto estende a atribuição da ANP à
fixação de regras para a exploração dos serviços de transporte, distribuição,
processamento e todas as etapas necessárias para que o gás chegue ao
consumidor. Estabelecerá para elas uma tarifa máxima e outra mínima, esta
correspondente ao retorno pretendido pelo investidor para a remuneração do
capital investido, com correção monetária e amortização de longo prazo. Dado o
viés estatista do governo Lula, há o temor de que a intervenção no sistema de
produção recaia mais sobre as empresas privadas do que sobre a Petrobras
monopolista.
Houve tempo suficiente, desde que o pré-sal
foi descoberto, em 2006, para se encontrar uma solução para ampliar a oferta de
gás natural, sem a necessidade de canetadas como a dos decretos desta semana. O
presidente Lula aproveitou a ocasião para anunciar que estenderá a compra
subsidiada de gás dos atuais 5,6 milhões de famílias que têm direito a um preço
menor para 20,8 milhões de famílias. O custo, de R$ 102 pago bimestralmente por
família, saltará de R$ 3,4 bilhões para R$ 13,6 bilhões em 2026, ano em que
Lula tentará a reeleição.
O presidente age como se houvesse fartos
recursos disponíveis e nenhuma restrição fiscal. Conseguiu ao mesmo tempo
ampliar o intervencionismo estatal, criar insegurança jurídica sobre contratos
em um setor que colhe esplêndidos resultados, gerar mais despesas e dificultar
ainda a missão do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de encontrar receitas
para financiar gastanças que parecem não ter fim.
Transição energética de Lula é balela
Folha de S. Paulo
Apesar da alcunha 'verde', enganosa, pacote
lançado pelo Planalto tem gás natural, combustível fóssil, como protagonista
Quando se trata de transição energética, em
qualquer lugar do mundo, o desafio é encontrar meios de substituir a queima de
combustíveis fósseis, que agrava a mudança
climática, por fontes limpas de energia. Não no Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), porém.
O pacote recém-lançado pelo Planalto, apesar
da alcunha "verde", enganosa, tem os olhos no passado. Quase
tudo nele se volta a fomentar o consumo de gás natural, outro fóssil a
jorrar dos campos do pré-sal, numa reprise do delírio estatizante que tantas
brechas abriu, não faz muito, para a corrupção.
"O gás é nosso" poderia ser o lema
dessa recaída no estilo varguista de propelir o desenvolvimentismo nacionalista
com hidrocarbonetos enterrados há milhões de anos. Trata-se de um recurso
finito e condenado à obsolescência pela luta contra o aquecimento global.
Até incentivos
para a moribunda indústria naval o programa traz, à revelia dos
fracassos no setor e na contramão da política da Fazenda de rever benefícios
tributários.
Nem mesmo se empregou a tese de acelerar os
fósseis para financiar a transição no sentido de energias descarbonizadas, como
a eletricidade eólica e solar fotovoltaica.
A espinha dorsal da política é ampliar a
geração em usinas termelétricas a gás, em detrimento de recursos renováveis
como vento e luz solar. Eis um rumo certo para sujar a
matriz energética nacional, uma das mais limpas da Terra.
Para tanto, o governo pretende reduzir a
reinjeção de gás nos poços petrolíferos, recurso empregado para otimizar a
retirada de óleo. Verdade que a parcela de reinjeção no país é alta, 56%,
contra a média internacional de 25%; também é fato que a queima do gás para
produzir eletricidade emite menos carbono que a de óleo ou carvão.
Hoje, a decisão sobre quanto gás será
reinjetado cabe à empresa detentora do campo, de olho na rentabilidade. Agora o
governo quer autorizar a Agência Nacional do Petróleo a
interferir no processo e estipular a proporção de gás reintroduzido no poço,
com vistas a aumentar a oferta do combustível.
Mais gás no mercado contribuirá para baixar
seu preço, favorecendo indústrias que já optaram por essa energia, mas tende a
encarecer o sistema como um todo, pela necessidade de infraestrutura de
distribuição. Foi assim com as emendas que impuseram termelétricas a gás em
estados do Nordeste onde não havia gasodutos.
Há quem aponte ainda que o pacote estaria em
conflito com a Lei do Gás de 2021, por criar obrigações e restringir direitos
de produtores. A mudança não poderia em princípio ser feita por meio de decreto
intervencionista, como agora.
O desenho apresentado pelo Planalto passa
longe, longe demais, de um plano efetivo de transição energética. Não está à
altura do que o Brasil almeja e a atmosfera do planeta necessita.
Entre o crime e o clima
Folha de S. Paulo
Incêndios suspeitos não eximem governos de
agir contra o aquecimento global
O avanço das chamas em São Paulo levou
à prisão, até esta terça (27), de meia dúzia de suspeitos de provocarem
incêndios. Um deles queimou lixo em seu terreno e foi liberado após o caso ser
registrado como crime ambiental. Outro diz ter agido em nome do PCC, mas sua
vinculação com a facção foi descartada pelo Ministério
Público.
A Polícia Civil paulista
e a Polícia
Federal estão apurando os casos. Por óbvio, devem-se
investigar ações propositais ou articuladas. Isso, contudo, não pode ser
usado como pretexto para governos se eximirem de enfrentar os efeitos da crise
do clima.
Segundo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva,
o enorme volume de queimadas em
dois dias seria sinal de atividade intencional. Mas essas 48 horas não bastam
para explicar o aumento descomunal de focos, não só em São Paulo, indicando que
a ação humana pode não ser o fator decisivo.
De 19 a 25 de agosto de 2023, foram
registrados 9.428 focos de incêndio no país. No mesmo período de 2024, o número
mais que dobrou, indo a 19.767. Em
São Paulo, a alta foi de 338%; em Mato Grosso, 236%. Os 3.482 focos no
território paulista entre 1º e 25 de agosto são quase dez vezes os 352 de todo
o mês no ano passado.
Desde junho de 2023, com o início do El Niño
aliado ao aquecimento global, o Brasil apresenta distúrbios climáticos que
afetam as cinco regiões —com grandes volumes de chuva no Sul e seca no restante
do país. Já se sabia que a estiagem do inverno em 2024 seria intensa.
O governo federal até chegou a aumentar a
infraestrutura de combate ao fogo na amazônia, mas
as medidas não foram suficientes. Agora, o bioma da região Norte, o pantanal e
São Paulo ardem, e
a fumaça chega a dez estados.
Que se investiguem possíveis atos criminosos.
Mas já passa da hora de o poder público, em todos os níveis, entender que os
efeitos da crise climática precisam ser monitorados continuamente, e planos de
prevenção e contenção devem ser instituídos com urgência.
Alexandre de Moraes ataca de novo
O Estado de S. Paulo
Ao tratar vazamento de mensagens que expõem
seus métodos heterodoxos como parte de um complô contra a democracia, o
ministro avilta o Estado Democrático de Direito que jura defender
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Alexandre de Moraes parece não ter ficado satisfeito em instrumentalizar o
poder de polícia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para aumentar ainda mais
o seu capital político-institucional, chamemos assim, como uma espécie de
plenipotenciário guarda-costas do Estado Democrático de Direito no Brasil.
Após o jornal Folha de S.Paulo ter
publicado o teor de conversas envolvendo Moraes e assessores que sugerem aquela
instrumentalização, o ministro não só determinou ex officio a
abertura de um inquérito para apurar o vazamento do conteúdo ao matutino, como
ainda se pôs a presidir a investigação – sigilosa, por óbvio, como é de seu
feitio.
Diante de mais essa mixórdia de papéis
promovida por Moraes ao arrepio do devido processo legal, a defesa de um dos
envolvidos nas conversas, Eduardo Tagliaferro, pediu ao presidente do STF,
ministro Luís Roberto Barroso, que Moraes fosse impedido de seguir como relator
do inquérito, haja vista o seu “nítido interesse na causa”. Barroso indeferiu o
pedido do ex-servidor do TSE sustentando que, nas mensagens, não havia indícios
de parcialidade de Moraes capazes de comprometer a sua permanência à frente do
caso.
No dia 25 passado, Moraes determinou que a
Secretaria Judiciária do STF procedesse à reautuação do inquérito sobre o
vazamento, agora como uma simples petição – uma “PET”, no jargão técnico da
Corte. Na prática, trata-se de algo próximo a um rebaixamento, pois um
inquérito, a rigor, deixou de existir do ponto de vista formal. O busílis é
que, no mesmo despacho, o ministro determinou que a tal “PET” fosse
“distribuída por prevenção ao Inquérito 4.781″, o chamado inquérito das fake
news, que, ora vejam, é relatado pelo próprio Moraes.
Não se pode condenar quem veja nessa manobra
uma forma de Moraes responder às críticas que tem recebido por sua atuação
opaca à frente dos inquéritos mais sensíveis sob sua relatoria no STF. Consta
que a enorme concentração de poder pelo ministro na condução dos infindáveis
inquéritos das fake news, das milícias digitais e dos atos
antidemocráticos tem incomodado cada vez mais alguns de seus pares na Corte,
ainda que, publicamente, tanto o STF como a Procuradoria-Geral da República
(PGR) sejam enfáticos na defesa de Moraes.
Todo esse apoio incondicional, no entanto,
começa a ficar constrangedor, para dizer o mínimo, diante de evidências cada
vez mais consistentes de que Moraes parece crer que vale tudo em nome de uma
suposta defesa do Estado Democrático de Direito, até mesmo atropelar os ritos
processuais mais comezinhos. A produção de provas contra suspeitos de atentar
contra a democracia fora do processo regular, como sugerem as conversas entre
Moraes e seu principal auxiliar no STF, o juiz instrutor Airton Vieira, e entre
este e Tagliaferro, estaria coberta por esse manto de sacralidade democrática
na defesa do País contra o golpismo bolsonarista. É disso que Moraes tem se
valido para contestar até mesmo seus críticos de boa-fé, que jamais devem ser
confundidos com os verdadeiros inimigos da democracia que detrataram a mais
alta instância do Poder Judiciário com o claro objetivo de minar sua
legitimidade como guardiã da Constituição “cidadã”.
Exposto o seu peculiar método de intercâmbio
de informações entre o STF e o TSE, Moraes se apressou em associar o vazamento
a uma suposta ação insidiosa de “organização criminosa” que, em sua visão,
teria como objetivo desestabilizar as instituições, fechar o STF e restaurar a
ditadura no País. Nada menos.
Concretamente, é forçoso dizer, se há algo em
curso no País que pode, de fato, desestabilizar as instituições e, no limite,
ameaçar o Estado Democrático de Direito é a atitude monocrática do ministro
Alexandre de Moraes e a sua aparente incapacidade de reconhecer erros na
condução de inquéritos sigilosos que há muitíssimo tempo já deveriam ter sido
encerrados.
Tamanha concentração de poder em uma
autoridade ou instituição é diametralmente oposta ao ideal republicano
fundamental. Ao agir como se pairasse acima do bem e do mal por força exclusiva
de suas eventuais virtudes morais ou boas intenções, Moraes avilta o próprio
Estado Democrático de Direito que ele jura defender.
Cobranças desarrazoadas
O Estado de S. Paulo
Ameaça de ministro de intervenção na Aneel e
cobrança de Lula de suposto descaso em demora da Anvisa evidenciam aversão do
governo federal à atuação das agências reguladoras
No curto intervalo de três dias, agências
reguladoras sofreram dois duros ataques do governo federal. No primeiro, o
ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), ameaçou intervir na
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), acusando-a de inércia no
andamento de processos do governo. O segundo round coube ao próprio
presidente Lula da Silva, durante a inauguração de uma indústria farmacêutica
no interior de São Paulo, quando reclamou de forma inflamada da demora na
liberação de medicamentos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa).
A ameaça de Silveira veio em forma de ofício
enviado à Aneel repleto de acusações aos diretores como omissão, retardamento,
funcionamento deficiente, incapacidade reiterada e inércia. Uma semana antes,
Silveira, em audiência na Câmara dos Deputados, havia dito que o governo
identificara um boicote das agências, que tinha a maioria dos cargos preenchida
pelo governo anterior. Lula também já havia reclamado que o loteamento das
agências havia favorecido a iniciativa privada.
Não chega a causar espanto a má vontade de
Lula em relação às agências reguladoras. Afinal, são autarquias que surgiram
como consequência do processo de desestatização, para garantir a elevação do
padrão de qualidade de serviços públicos que passaram a ser oferecidos por
empresas privadas. Na visão maniqueísta de seu governo, as agências representam
a redução do poder do Estado sobre a economia, um verdadeiro anátema para a
seita lulopetista.
Sob a gestão Bolsonaro, no extremo oposto, a
contrariedade com a atuação autônoma das agências – garantida por lei – também
desagradou sobremaneira. O exemplo mais gritante foi a resistência da Anvisa em
avalizar a prescrição de medicamentos como a hidroxicloroquina como tratamento
da covid, como defendia Bolsonaro. Recorde-se que a vacinação contra a doença
ocorreu diante da persistência da agência, sem a qual o número de mortes
poderia ter sido ainda maior do que as 700 mil registradas.
Horas depois de Lula afirmar que só veria
rapidez quando “algum companheiro da Anvisa perceber que um parente morreu
(...) porque o remédio não foi produzido”, o presidente da agência, Antonio
Barra Torres, revidou publicamente, dizendo que desde a transição vem alertando
sobre o déficit de pessoal e suas consequências. Tentando acalmar os ânimos, a
ministra da Saúde, Nísia Trindade, publicou extensa nota pública reconhecendo o
sucateamento da Anvisa e de outros órgãos e defendendo para a autarquia “a mesma
autonomia técnica que permitiu respostas ao negacionismo do governo anterior”.
Aneel e Anvisa integram o rol de 11 agências
reguladoras setorizadas que atuam hoje com cerca de um terço de sua capacidade
operacional e contabilizam 3.708 cargos vagos, de acordo com levantamento do
Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação
(Sinagências). A gestão autônoma dessas instituições de Estado não significa
que operem de forma apartada do governo ou da sociedade. Tanto que a maioria
das sessões deliberativas é aberta à participação pública, podendo ser
acompanhada inclusive pela internet. As audiências públicas para definir
políticas setorizadas são uma praxe em todas elas.
O temor de uma interferência desmedida do
governo fez o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU)
pedir à Corte medida cautelar para evitar qualquer ato que caracterize ameaça à
Aneel. O MPTCU diverge da tese de que há previsão legal para intervenção em
agências reguladoras. O ministro Silveira, porém, voltou à carga e reiterou que
a Aneel é vinculada ao Ministério de Minas e Energia e, como tal, sujeita a
cobranças. “Não é nada de mais dizer que todos os diretores das agências até
então foram nomeados por um governo que não tem sinergia conosco”, disse.
Para garantir que serviços que saíram da
esfera estatal para a iniciativa privada cheguem aos cidadãos de maneira
eficiente e com qualidade é preciso despolitizar o debate. E, mais importante,
dotar de pessoal e equipamentos as agências antes de subir o tom das cobranças.
Tropeço da ciência no Brasil
O Estado de S. Paulo
Produção cai por dois anos, num sinal de que
fontes de financiamento exigem reformas
A produção científica no Brasil vai mal. Pela
primeira vez, o número de artigos científicos publicados por pesquisadores
brasileiros registrou queda por dois anos seguidos. A desaceleração da
produtividade daqueles que se dedicam ao conhecimento, à inovação e à
tecnologia no País escancara um diagnóstico nada abonador para o futuro de uma
nação que almeja o progresso. Não há desenvolvimento possível sem ciência de
ponta.
Os números são desanimadores. De acordo com o
relatório da Agência Bori em parceria com a editora científica Elsevier, a
produção do Brasil caiu 7,2% em 2023 em relação ao ano anterior. Além disso, em
2022 foi registrado um recuo de 8,5% na produção em relação a 2021, quando o
País havia batido o recorde de publicações, com mais de 69 mil artigos. Os
dados mostram a reversão de uma alta contínua iniciada em 1996.
Existem muitos fatores que explicam esse
cenário, que no Brasil, porém, é mais desolador. O primeiro deles a impactar a
pesquisa já era previsto para o mundo todo e se trata de um refluxo decorrente
da covid-19. Durante a pandemia, pesquisadores de inúmeros países buscaram
respostas para a doença que assolava a humanidade. Passada essa fase aguda, a
tendência era de queda na produção de artigos científicos.
Mas no Brasil a baixa na produção é maior do
que a verificada em outros países. Em termos porcentuais, o País só ficou atrás
de Etiópia e Taiwan, em uma lista com 53 países. Logo, não só a covid explica
tamanho insucesso. Segundo o relatório, os investimentos públicos federais em
pesquisa têm caído desde 2013 e a soma dos investimentos estaduais, desde 2015.
Não há pesquisa sem dinheiro.
Apesar dos reajustes de bolsas de mestrado e
doutorado, os valores ainda ficam aquém das necessidades, e isso se reflete no
interesse pela área. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), o número de ingressantes em pós-graduação caiu 12%
entre 2019 e 2022 e, no ano passado, voltou a subir (10,8%).
Ao Estadão, o pró-reitor de Pesquisa e
Inovação da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Nussenzveig, faz uma
metáfora perfeita sobre a situação do País ao afirmar que “pesquisa científica
é como maratona, não é corrida de 100 metros”. Por isso, de acordo com ele, o
Brasil demanda constância e segurança, e “é nisso que o País precisa focar
daqui para a frente”.
Passou da hora de o Brasil levar pesquisa
científica a sério, e isso exige mudanças estruturais que vão contrariar
lobbies acadêmicos e sindicais, além de se chocar com ranços ideológicos. Não à
toa, o governo federal, avesso ao debate, aparentemente ignorou os resultados
do relatório.
Fato é que o País precisa de reformas
profundas para aumentar as fontes de financiamento da ciência, o que inclui a
participação mais ativa do setor privado, a valorização das pesquisas de
impacto e a recompensa justa aos pesquisadores em razão de seus méritos e de
metas alcançadas. Somente com essas mudanças é que a ciência vai se tornar mais
atrativa para jovens talentos, mais produtiva e de melhor qualidade.
Liderança ambiental sem ambiguidades
Correio Braziliense
O protagonismo ambiental precisa acontecer a
partir do rompimento de paradigmas inversamente proporcionais, como o ainda
alto consumo de combustíveis fósseis no Brasil
Enquanto o Brasil arde em chamas, o Relatório
da Organização Meteorológica Mundial, organizado pela ONU e publicado ontem,
aponta para um panorama também apocalíptico em ilhas do Pacífico. Nos últimos
30 anos, o nível do oceano aumentou em média 15cm. Em algumas regiões, no
entanto, esse dado ultrapassou os 30cm, como em Pago Pago, capital de Samoa
Americana, e Suva, principal cidade de Fiji.
O cenário devastador motivou uma visita do
secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a Tonga, um dos países
com risco de ser engolido pelo mar nas próximas décadas. Tuvalu, também na
Oceania, é outro território ameaçado. Como é de conhecimento científico e da
sociedade em geral, o aumento do nível do mar está diretamente relacionado ao
derretimento de geleiras, uma consequência do aquecimento global.
As sucessivas tragédias ambientais aqui e em
outros países são um prenúncio do que as próximas gerações vão sofrer diante da
inércia humana para pensar soluções mais sustentáveis e adotar um estilo de
vida menos dependente da exploração natural, sobretudo dos combustíveis
fósseis. A situação é cada vez mais irreversível.
Ainda que o Brasil tenha uma das matrizes
energéticas mais sustentáveis do planeta, a partir da predominância da fonte
hidrelétrica, o país precisa ampliar seu protagonismo na discussão mundial
sobre o tema. São bem-vindas iniciativas como a do atual governo ao se colocar
à disposição para receber a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas
(COP-30), a ser realizada em Belém, em novembro do ano que vem.
Mesmo assim, esse protagonismo precisa
acontecer também a partir do rompimento de paradigmas inversamente
proporcionais, como o ainda alto consumo de combustíveis fósseis no país — 92%
da energia usada em transporte tinha origem do tipo em 2019, segundo a Agência
Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). É preciso que o poder
público incentive e até dê mais subsídios às produções de etanol e biodiesel,
ainda que políticas como essas sejam impopulares na elite econômica, sobretudo
entre acionistas da Petrobras, principal produtora de petróleo do Brasil.
O momento atual é chave para definição do
futuro da humanidade. É preciso pensar de maneira coletiva, característica tão
rara atualmente. Basta ver os casos dos países insulares da Oceania que
praticamente não contribuem para a poluição do planeta, até por conta de suas
pequenas populações, mas serão os primeiros a pagar a conta.
Não há mais espaço para o toma lá dá cá
ambiental a partir de posicionamentos ambíguos, como sediar a próxima COP ao
mesmo tempo em que se tenta ampliar a exploração de petróleo. É preciso
incentivar o pensamento da cidade inteligente, que alia o avanço da tecnologia
ao desenvolvimento sustentável.
Urge a criação de mecanismos capazes de
apontar mais precisamente os culpados pelos noticiados incêndios criminosos,
mas também os responsáveis pelo desperdício de água e pelo desenvolvimento de
poluição em larga escala.
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