OS PERIGOS DA DEMONIZAÇÃO DA PF
Maria Inês Nassif
O corpo burocrático do Estado tende a reivindicar a representação da racionalidade, mas sequer a racionalidade é neutra. A Constituinte de 1988 deu autonomia ao Judiciário e ao Ministério Público e aumentou os controles sobre um aparelho policial hipertrofiado pela ditadura, obrigando a sua profissionalização. Ao longo dos 20 anos de amadurecimento democrático das instituições, ora uma, ora outra, avança sobre o espaço das demais, reivindicando para si a capacidade de agir racionalmente em nome do Estado.
É possível em cada uma das unidades da Federação mapear conflitos entre instituições - ou alianças eventuais - e, ao longo de suas cadeias hierárquicas, apontar acúmulo ou esvaziamento de poder em instâncias estaduais e federais. O episódio da prisão e soltura dupla do empresário Daniel Dantas - prisão dupla pelo juiz de primeira instância, Fausto de Sanctis; soltura dupla pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes - é a personificação do conflito. E a mostra efetiva de que, se em algum momento as instâncias inferiores da Justiça, o MP e a Polícia Federal (PF) tiveram protagonismo em questões nacionais importantes, ele vem sendo gradativamente esvaziado em favor de uma concentração de poderes nas mãos da mais alta corte judiciária do país.
O ativismo judicial, defendido por parcela da opinião pública como uma garantia de que a "racionalidade" do STF conteria a "irracionalidade" da ação política do Legislativo, produziu outras crias. O Supremo ocupou cada vez mais espaços - hoje não apenas tem o instrumento constitucional da súmula vinculante, mas desfrutou (pelo menos até agora) de uma legitimidade autoconferida por um entendimento do que é o "clamor público", e com esse mandato promoveu a adequação das leis à sua própria racionalidade. A reação dos juízes contra a decisão do presidente do STF, acompanhada por outra igual dos procuradores - e de uma contra-reação dos advogados e defensores públicos - mostra que também a racionalidade do aparelho burocrático do Estado é política. Pode não ser partidária, mas é política.
Mendes transitou por várias instituições
A demonização da política foi o primeiro passo para a legitimação do ativismo judiciário. A apropriação do senso comum de que o político eleito é corrupto, até que se prove o contrário; de que os partidos são por princípio venais; e de que a política sempre encerra interesses inconfessáveis, tem legitimado a atuação legislativa do STF. Também foi ela que moveu as espetaculares ações da PF - investigações agressivas, quase "sentenciatórias", que nem sempre foram referendadas pelas várias instâncias do Judiciário. A Operação Satiagraha, que levou à prisão o empresário Daniel Dantas, deve marcar um refluxo na ofensiva da PF de ocupar o espaço de outras instituições, mas pode perigosamente concentrar mais poderes no STF. A demonização da PF, tal como antes aconteceu com os políticos em geral, já começou - à polícia passou a ser atribuída incompetência investigativa, leviandade e sensacionalismo. Isso é generalizar o que não é generalizável: as ações da PF não são em geral rasas, levianas ou sensacionais; assim como os políticos não são genericamente corruptos.
A demonização da PF tende a concentrar mais poderes na instância maior da Justiça. É um caminho perigoso, uma vez que o Supremo não dispõe de estrutura ou de capacidade investigatória. Todo o ativismo justificado até agora como um instrumento para tornar a justiça mais eficaz e célere pode resultar num afunilamento de decisões nas mãos do STF, com prejuízo da celeridade e serenidade nos julgamentos.
O ministro Gilmar Mendes, pelo seu currículo, seria a pessoa indicada para colocar essa disputa de poder entre instituições no limite do tolerável. Afinal, ele é originário do Ministério Público, foi advogado-geral da União e agora preside o STF. Em três instituições, ele conviveu e assimilou "racionalidades" diferentes - como advogado-geral, assumiu a lógica do Executivo com fervor, inclusive contra o que achou ser irracionalidade do MP (de onde veio) ou do STF (para onde foi). Como ministro do STF, tem declarado oposição pública à Polícia Federal, ao ministro da Justiça e à MP. Como presidente do STF, agiu duro contra o que considerou rebeldia do juiz Fausto de Sanctis, que emitiu duas ordens de prisão contra o banqueiro. Por entendimento ou conflito, portanto, Mendes transitou pela lógica de diferentes corpos burocráticos e diversas instâncias judiciárias, jogando duro o suficiente para ampliar o poder da instituição da qual fazia parte no momento. Usou a sua capacidade ofensiva para o conflito. Talvez seja a hora de usá-la para colocar o poder de cada instituição - inclusive e principalmente do STF - nos seus devidos lugares.
Maria Inês Nassif
O corpo burocrático do Estado tende a reivindicar a representação da racionalidade, mas sequer a racionalidade é neutra. A Constituinte de 1988 deu autonomia ao Judiciário e ao Ministério Público e aumentou os controles sobre um aparelho policial hipertrofiado pela ditadura, obrigando a sua profissionalização. Ao longo dos 20 anos de amadurecimento democrático das instituições, ora uma, ora outra, avança sobre o espaço das demais, reivindicando para si a capacidade de agir racionalmente em nome do Estado.
É possível em cada uma das unidades da Federação mapear conflitos entre instituições - ou alianças eventuais - e, ao longo de suas cadeias hierárquicas, apontar acúmulo ou esvaziamento de poder em instâncias estaduais e federais. O episódio da prisão e soltura dupla do empresário Daniel Dantas - prisão dupla pelo juiz de primeira instância, Fausto de Sanctis; soltura dupla pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes - é a personificação do conflito. E a mostra efetiva de que, se em algum momento as instâncias inferiores da Justiça, o MP e a Polícia Federal (PF) tiveram protagonismo em questões nacionais importantes, ele vem sendo gradativamente esvaziado em favor de uma concentração de poderes nas mãos da mais alta corte judiciária do país.
O ativismo judicial, defendido por parcela da opinião pública como uma garantia de que a "racionalidade" do STF conteria a "irracionalidade" da ação política do Legislativo, produziu outras crias. O Supremo ocupou cada vez mais espaços - hoje não apenas tem o instrumento constitucional da súmula vinculante, mas desfrutou (pelo menos até agora) de uma legitimidade autoconferida por um entendimento do que é o "clamor público", e com esse mandato promoveu a adequação das leis à sua própria racionalidade. A reação dos juízes contra a decisão do presidente do STF, acompanhada por outra igual dos procuradores - e de uma contra-reação dos advogados e defensores públicos - mostra que também a racionalidade do aparelho burocrático do Estado é política. Pode não ser partidária, mas é política.
Mendes transitou por várias instituições
A demonização da política foi o primeiro passo para a legitimação do ativismo judiciário. A apropriação do senso comum de que o político eleito é corrupto, até que se prove o contrário; de que os partidos são por princípio venais; e de que a política sempre encerra interesses inconfessáveis, tem legitimado a atuação legislativa do STF. Também foi ela que moveu as espetaculares ações da PF - investigações agressivas, quase "sentenciatórias", que nem sempre foram referendadas pelas várias instâncias do Judiciário. A Operação Satiagraha, que levou à prisão o empresário Daniel Dantas, deve marcar um refluxo na ofensiva da PF de ocupar o espaço de outras instituições, mas pode perigosamente concentrar mais poderes no STF. A demonização da PF, tal como antes aconteceu com os políticos em geral, já começou - à polícia passou a ser atribuída incompetência investigativa, leviandade e sensacionalismo. Isso é generalizar o que não é generalizável: as ações da PF não são em geral rasas, levianas ou sensacionais; assim como os políticos não são genericamente corruptos.
A demonização da PF tende a concentrar mais poderes na instância maior da Justiça. É um caminho perigoso, uma vez que o Supremo não dispõe de estrutura ou de capacidade investigatória. Todo o ativismo justificado até agora como um instrumento para tornar a justiça mais eficaz e célere pode resultar num afunilamento de decisões nas mãos do STF, com prejuízo da celeridade e serenidade nos julgamentos.
O ministro Gilmar Mendes, pelo seu currículo, seria a pessoa indicada para colocar essa disputa de poder entre instituições no limite do tolerável. Afinal, ele é originário do Ministério Público, foi advogado-geral da União e agora preside o STF. Em três instituições, ele conviveu e assimilou "racionalidades" diferentes - como advogado-geral, assumiu a lógica do Executivo com fervor, inclusive contra o que achou ser irracionalidade do MP (de onde veio) ou do STF (para onde foi). Como ministro do STF, tem declarado oposição pública à Polícia Federal, ao ministro da Justiça e à MP. Como presidente do STF, agiu duro contra o que considerou rebeldia do juiz Fausto de Sanctis, que emitiu duas ordens de prisão contra o banqueiro. Por entendimento ou conflito, portanto, Mendes transitou pela lógica de diferentes corpos burocráticos e diversas instâncias judiciárias, jogando duro o suficiente para ampliar o poder da instituição da qual fazia parte no momento. Usou a sua capacidade ofensiva para o conflito. Talvez seja a hora de usá-la para colocar o poder de cada instituição - inclusive e principalmente do STF - nos seus devidos lugares.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
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