TEATRO DE ABSURDOS
Míriam Leitão
Míriam Leitão
O Brasil não vive uma crise institucional. Vive um surto de nonsense desde o começo do caso do banqueiro Daniel Dantas. A entrevista conjunta do presidente do Supremo e do ministro da Justiça, depois de ambos levarem uma chamada do presidente Lula, foi um despropósito institucional. O presidente do STF não é um dos ministros de Lula; não é subordinado ao chefe do Executivo.
Para falar uma expressão tão em voga: nada disso é republicano. Já que a República, como se sabe, assenta-se na independência dos poderes. A queda-de-braço entre o presidente do STF, Gilmar Mendes, e um juiz de primeira instância; a fratura exposta da Polícia Federal; o bate-boca entre Gilmar Mendes e o ministro Tarso Genro; a nota de Gilberto Carvalho negando o que sua própria voz dizia na gravação; e a justificativa para o afastamento do delegado que dirigia a investigação são flagrantes de um teatro de absurdos.
Alguém acreditou na explicação de Tarso Genro para a saída do delegado Protógenes Queiroz? Nem o chefe dele, o presidente Lula, que ontem disse que o delegado tem de voltar à função. A justificativa havia sido a seguinte: ele saiu porque todo delegado, após dez anos, tem que fazer um curso de reciclagem, e ele até entrou na Justiça pelo direito de fazer o tal curso. Ora, ou bem é uma rotina profissional, ou ele brigou na Justiça para fazer o curso. É um desrespeito à inteligência alheia uma explicação assim tão pedestre. Se o chefe da PF acha que ele é "descontrolado", como diria o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, tinha que ter sido transparente e explicado que erros o delegado supostamente cometeu. Agora está na constrangedora situação de voltar atrás.
O risco na atrapalhada maneira com que o governo lida com esta crise é esquecer-se do principal, que é sustentar com provas sólidas as acusações feitas aos envolvidos: lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas. A tentativa de suborno de um policial é crime; cometido para acobertar os outros pelos quais eles estavam sendo investigados. A gestão fraudulenta de instituição financeira tem que ser avaliada e investigada pelo Banco Central também, como alertou, em artigo no GLOBO, o empresário Roberto Teixeira da Costa. A resposta dada pelo presidente do BC, Henrique Meirelles, ao senador Aloizio Mercadante é outro despropósito. Mercadante disse que ou a PF está exagerando quando fala em "gestão fraudulenta" ou houve omissão do Banco Central. Meirelles, ao responder, comparou o caso do Opportunity a um "funcionário de banco que comete crime nas horas vagas". Uma resposta espantosa: o BC tem que ter algo a dizer e a fazer neste caso.
O presidente Lula tem feito contorcionismos para defender Gilberto Carvalho. A uma repórter que perguntou ontem sobre a estranha conversa entre Carvalho e o advogado de Daniel Dantas, Lula respondeu: "Se você me telefonar, quem vai atender é o Gilberto Carvalho. Peço a Deus que seu telefonema não esteja sendo gravado, pois pode aparecer a sua conversa com Gilberto Carvalho." O fato de o secretário ser o filtro para telefonemas para o presidente é rotina em qualquer Presidência, o que não é normal é o teor da conversa. Um advogado não pode pedir ao secretário da Presidência que apure, junto a órgãos do governo, se um cliente seu está sendo investigado; o secretário não pode estar disponível para esse tipo de serviço encomendado. Da resposta do presidente se depreende que só Deus - e não os limites institucionais - protege as pessoas de gravação de telefonemas.
Na conversa gravada pela Polícia Federal, Carvalho diz, com todas as letras, que o tal sujeito que teria abordado o cliente de Greenhalgh só pode ter identidade falsa: "O general me deu retorno agora... Aqui não tem nada. O cara tava armando com documento falso, o que é muito comum no Rio de Janeiro." Na nota de explicação para a conversa em que ambos transportam para a esfera pública uma camaradagem que tem de estar restrita às questões privadas, Gilberto Carvalho garante ter dito que, sim, o tenente em questão estava credenciado na Presidência. Foi um momento pitoresco ouvir a voz do secretário dizendo uma coisa e ele, em nota, garantindo não ter dito o que todos o ouviram dizer. Mas tudo vai ficar por isso mesmo. A moribunda CPI do Grampo tenta ressuscitar com este episódio, mas não vai convocar exatamente os dois envolvidos neste espantoso diálogo.
Pelo visto, o surto de nonsense vai ter agora outro capítulo com o ex-banqueiro Salvatore Cacciola. O habeas corpus concedido pelo presidente do STJ, Humberto Gomes de Barros, para que não fosse algemado ao chegar ao Brasil foi com o argumento de que ele "é idoso". Cacciola é um condenado que fugiu do país aproveitando-se de um habeas corpus e não foi preso num asilo de velhos, e, sim, em animada viagem a Mônaco.
Este caso mal começou. O risco é que a trapalhada continue e sirva para minar a confiança dos cidadãos nas instituições do país. O risco é, mais uma vez, o país ter que engolir o inaceitável, o comportamento desviante de autoridades. O risco é o caso ser esquecido antes de ser esclarecido, como aconteceu com o compadre do presidente Lula, Roberto Teixeira, que também usava os privilegiados canais que tem para beneficiar os clientes da sua banca de advocacia.
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