Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Na terça-feira, 17 de março, a Rosekranz Foundation promoveu, em Nova York, um debate denominado "Blame Washington more than Wall Street for the Financial Crisis". Como o leitor há de perceber, a forma de apresentação do tema já aponta o dedo indicador para os senhores de Washington - aí incluídos o Federal Reserve, o Congresso e o Executivo. Seriam eles os "culpados" pela construção do castelo de cartas que começou a desabar em meados de 2007?
Participaram do conclave, entre outros, o historiador de Harvard Niall Ferguson, o economista Nouriel Roubini, o jornalista do New York Times Alex Berenson e Byron Wien, ex-executivo do Morgan Stanley. A audiência, formada por 700 cidadãos nova-iorquinos, votou antes e depois do debate. No primeiro escrutínio, Washington bateu Wall Street com 42% dos votos contra 30% e 28% de indecisos. No segundo, a coisa piorou para Washington. A culpabilidade do governo foi atestada por 60% dos votos.
O jornalista Alex Berenson discordou da forma pela qual o tema foi apresentado: "Washington-versus-Wall Street é uma falsa dicotomia porque os bancos tornaram-se tão poderosos na esfera financeira que disseram a Washington: se a regulamentação for restritiva, vamos cair fora, criar empregos no exterior e não haverá regulamentação sobre o nada". Niall Ferguson, o historiador, iniciou sua intervenção com uma diatribe contra Washington. Levantou a plateia ao revelar que a seguradora AIG gastou em 2008 US$ 9,7 milhões em ações de lobby no governo federal. As campanhas eleitorais dos presidentes da Comissão de Finanças e o presidente da Comissão de Bancos do Senado foram os maiores beneficiários da grana.
A observação de Berenson e a notícia de Ferguson nos remetem - perdão pelo eufemismo - ao peculiar caráter "liberal" (no sentido europeu) do Estado americano, desde a sua constituição. Nas últimas décadas do Século XIX e no início do Século XX, as práticas financeiras especulativas e os sucessivos episódios de deflação de preços se desenvolveram à sombra de um Estado cúmplice da concorrência darwinista. A ausência de um banco central até 1913 permitiu a eclosão de episódios de liquidação selvagem de ativos que se sucederam na missão de destruir a riqueza do "público", impulsionar a centralização do capital e consolidar o assim chamado capitalismo trustificado. O surgimento e o desenvolvimento da grande corporação americana e de sua capacidade competitiva tiveram o apoio do Estado. Mais tarde, esse apoio seria decisivo no movimento de transnacionalização dos bancos e das empresas americanas.
Na América, a vulnerabilidade do poder político diante dos interesses privados, agora "descoberta" pelos críticos da crise, está no DNA das relações entre Estado, sociedade e economia. Os chamados movimentos "populistas" e "progressistas", débeis nos períodos de euforia, ressurgem vigorosos nos momentos de crise econômica e social. São esperanças, tão efêmeras quanto recorrentes, de interromper o contubérnio entre os grandes negócios e o Estado. A Era Progressiva do começo do Século XX foi um episódio de rebelião "democrática" dos pequenos proprietários, dos novos profissionais liberais e das massas trabalhadoras contra o poder dos bancos e das grandes corporações. "Os progressistas" - escreve Sean Cashman - em America Ascendant, queriam limitar o poder do big business, tornar o sistema político mais representativo e ampliar o papel do governo na proteção do interesse público e na melhoria das péssimas condições sociais e de pobreza.
Tais pretensões foram retomadas e aprofundadas com o New Deal. Desta vez, ficou exposta a fratura entre a "classe financeira" de Wall Street, as exigências da indústria e os interesses da grande maioria da população - fortemente atingida pela depressão. No New Deal, o poder e o prestígio de Wall Street chegaram ao fundo do poço, como atestam as seguidas manifestações iradas contra a ganância dos banqueiros.
A memória dos anos 20 e 30 do Século XX norteou o imaginário dos governos que emergiram da tragédia social e econômica da Grande Depressão e da Segunda Guerra. Na esfera da finança e do crédito, as desordens do entre-guerras estimularam a imposição de regras de bom comportamento aos bancos e às demais instituições financeiras. Durou pouco. Na posteridade dos 30 anos gloriosos, os senhores de Wall Street e de Washington cuidaram de restaurar o império da finança desregrada.
Nos mandatos republicanos de Reagan e de Bush father & sons a promiscuidade era escancarada: difícil dizer se estávamos diante de um governo eleito ou de um escritório de corretagem. Mas os ex-presidentes republicanos não eram exceções: o democrata Clinton protagonizou a façanha de impor os interesses da alta finança americana em todo o mundo, com o aplauso e o apoio entusiasmado dos endinheirados do planeta. Por essas e outras, William Greider, o editor de economia da revista americana "The Nation" pegou no nervo: a crise de "credibilidade" que ora derruba os mercados e trava o crédito não é fruto de malfeitorias isoladas, mas o resultado lógico do contubérnio entre governos cúmplices e negócios espertos. Numa audiência sobre o pacote trilhonário de resgate dos bancos e assemelhados, o republicano Maxine Waters perguntou a Tim Geithner por que, em ocasiões como essa, está sempre interrogando um aluno da Goldman Sachs.
Ao enclausurar as razões da crise na tola dicotomia Washington versus Wall Street, o debate promovido pela Rozenkraz é um exemplo do retrocesso da consciência humana para formas de expressão que o filósofo vietnamita Tran Duc Tao chamou de sincréticas ("nenê sofá sentado").
A formas sincréticas antecedem, na gênese da consciência, a frase capaz de conectar sujeito, verbo e predicado e dar sentido aos substantivos diferenciados. Há quem afirme, como Hanna Arendt, que a degeneração da sociedade dos indivíduos na sociedade de massas produziu a degradação das formas de compreensão do mundo mais abrangentes, próprias da primeira modernidade. As simplificações agressivamente binárias e retrógradas são típicas do pensamento midiático e "internético" contemporâneos, uma forma de dominação eficaz que espezinha o projeto de autonomia do cidadão.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo , ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Na terça-feira, 17 de março, a Rosekranz Foundation promoveu, em Nova York, um debate denominado "Blame Washington more than Wall Street for the Financial Crisis". Como o leitor há de perceber, a forma de apresentação do tema já aponta o dedo indicador para os senhores de Washington - aí incluídos o Federal Reserve, o Congresso e o Executivo. Seriam eles os "culpados" pela construção do castelo de cartas que começou a desabar em meados de 2007?
Participaram do conclave, entre outros, o historiador de Harvard Niall Ferguson, o economista Nouriel Roubini, o jornalista do New York Times Alex Berenson e Byron Wien, ex-executivo do Morgan Stanley. A audiência, formada por 700 cidadãos nova-iorquinos, votou antes e depois do debate. No primeiro escrutínio, Washington bateu Wall Street com 42% dos votos contra 30% e 28% de indecisos. No segundo, a coisa piorou para Washington. A culpabilidade do governo foi atestada por 60% dos votos.
O jornalista Alex Berenson discordou da forma pela qual o tema foi apresentado: "Washington-versus-Wall Street é uma falsa dicotomia porque os bancos tornaram-se tão poderosos na esfera financeira que disseram a Washington: se a regulamentação for restritiva, vamos cair fora, criar empregos no exterior e não haverá regulamentação sobre o nada". Niall Ferguson, o historiador, iniciou sua intervenção com uma diatribe contra Washington. Levantou a plateia ao revelar que a seguradora AIG gastou em 2008 US$ 9,7 milhões em ações de lobby no governo federal. As campanhas eleitorais dos presidentes da Comissão de Finanças e o presidente da Comissão de Bancos do Senado foram os maiores beneficiários da grana.
A observação de Berenson e a notícia de Ferguson nos remetem - perdão pelo eufemismo - ao peculiar caráter "liberal" (no sentido europeu) do Estado americano, desde a sua constituição. Nas últimas décadas do Século XIX e no início do Século XX, as práticas financeiras especulativas e os sucessivos episódios de deflação de preços se desenvolveram à sombra de um Estado cúmplice da concorrência darwinista. A ausência de um banco central até 1913 permitiu a eclosão de episódios de liquidação selvagem de ativos que se sucederam na missão de destruir a riqueza do "público", impulsionar a centralização do capital e consolidar o assim chamado capitalismo trustificado. O surgimento e o desenvolvimento da grande corporação americana e de sua capacidade competitiva tiveram o apoio do Estado. Mais tarde, esse apoio seria decisivo no movimento de transnacionalização dos bancos e das empresas americanas.
Na América, a vulnerabilidade do poder político diante dos interesses privados, agora "descoberta" pelos críticos da crise, está no DNA das relações entre Estado, sociedade e economia. Os chamados movimentos "populistas" e "progressistas", débeis nos períodos de euforia, ressurgem vigorosos nos momentos de crise econômica e social. São esperanças, tão efêmeras quanto recorrentes, de interromper o contubérnio entre os grandes negócios e o Estado. A Era Progressiva do começo do Século XX foi um episódio de rebelião "democrática" dos pequenos proprietários, dos novos profissionais liberais e das massas trabalhadoras contra o poder dos bancos e das grandes corporações. "Os progressistas" - escreve Sean Cashman - em America Ascendant, queriam limitar o poder do big business, tornar o sistema político mais representativo e ampliar o papel do governo na proteção do interesse público e na melhoria das péssimas condições sociais e de pobreza.
Tais pretensões foram retomadas e aprofundadas com o New Deal. Desta vez, ficou exposta a fratura entre a "classe financeira" de Wall Street, as exigências da indústria e os interesses da grande maioria da população - fortemente atingida pela depressão. No New Deal, o poder e o prestígio de Wall Street chegaram ao fundo do poço, como atestam as seguidas manifestações iradas contra a ganância dos banqueiros.
A memória dos anos 20 e 30 do Século XX norteou o imaginário dos governos que emergiram da tragédia social e econômica da Grande Depressão e da Segunda Guerra. Na esfera da finança e do crédito, as desordens do entre-guerras estimularam a imposição de regras de bom comportamento aos bancos e às demais instituições financeiras. Durou pouco. Na posteridade dos 30 anos gloriosos, os senhores de Wall Street e de Washington cuidaram de restaurar o império da finança desregrada.
Nos mandatos republicanos de Reagan e de Bush father & sons a promiscuidade era escancarada: difícil dizer se estávamos diante de um governo eleito ou de um escritório de corretagem. Mas os ex-presidentes republicanos não eram exceções: o democrata Clinton protagonizou a façanha de impor os interesses da alta finança americana em todo o mundo, com o aplauso e o apoio entusiasmado dos endinheirados do planeta. Por essas e outras, William Greider, o editor de economia da revista americana "The Nation" pegou no nervo: a crise de "credibilidade" que ora derruba os mercados e trava o crédito não é fruto de malfeitorias isoladas, mas o resultado lógico do contubérnio entre governos cúmplices e negócios espertos. Numa audiência sobre o pacote trilhonário de resgate dos bancos e assemelhados, o republicano Maxine Waters perguntou a Tim Geithner por que, em ocasiões como essa, está sempre interrogando um aluno da Goldman Sachs.
Ao enclausurar as razões da crise na tola dicotomia Washington versus Wall Street, o debate promovido pela Rozenkraz é um exemplo do retrocesso da consciência humana para formas de expressão que o filósofo vietnamita Tran Duc Tao chamou de sincréticas ("nenê sofá sentado").
A formas sincréticas antecedem, na gênese da consciência, a frase capaz de conectar sujeito, verbo e predicado e dar sentido aos substantivos diferenciados. Há quem afirme, como Hanna Arendt, que a degeneração da sociedade dos indivíduos na sociedade de massas produziu a degradação das formas de compreensão do mundo mais abrangentes, próprias da primeira modernidade. As simplificações agressivamente binárias e retrógradas são típicas do pensamento midiático e "internético" contemporâneos, uma forma de dominação eficaz que espezinha o projeto de autonomia do cidadão.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo , ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário