Mercio Pereira
Antropólogo e ex-Presidente da FUNAI
As ressalvas do STF aqui analisadas neste Blog e numeradas como 17, 19 e 20, constituem a forca, a guilhotina, ou o garrote com o qual se decidiu dar cabo do processo de demarcação de terras indígenas e, ao mesmo tempo, fazer regredir a política e a tradição indigenista rondoniana para o século XIX.
As demais ressalvas contidas na decisão final do STF, ao término da votação sobre a legitimidade da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, constituem o cadafalso sobre o qual se instalou a mencionada forca, ou guilhotina, ou garrote.
São ressalvas que definem proibições e restrições do usufruto das riquezas da terra indígena por parte dos índios, determinando a presença inconsultável de forças policiais e militares, bem como do Instituto Chico Mendes.
Os índios não poderão, por exemplo, daqui por diante, fazer uma pequena faiscação de ouro ou alguma pedra preciosa (sem falar em diamantes, Deus me livre!) em suas terras, a não ser que tenha uma licença de garimpagem. Isso era permitido pelo Estatuto do Índio desde 1973. Não poderão mais entrar ou fazer uso (digamos caçar um tatu) em suas terras se elas também se constituírem parques ou reservas biológicas ou florestais, sem permissão explícita do Instituto Chico Mendes, nova instituição que se desmembrou do IBAMA. (Chico Mendes bem que estaria se remoendo em seu túmulo diante dessa norma restritiva imposta aos índios!)
Abrir uma rodovia atravessando uma terra indígena?? Moleza! Agora nem precisa comunicar aos índios, quando mais pedir-lhes permissão, ao menos aconxambrar as coisas! Haja estradas e rodovias a serem feitas pela Amazônia afora. Agora sai a rodovia que querem fazer atravessando a Ilha de Bananal, pois não?! E os índios não terão direito a um mínimo ressarcimento, um simples controle de passagem, um mísero pedágio pelas consequências ambientais e étnicas que advirão dessas estradas.
A segurança das terras indígenas contra invasores fazendeiros, mineradores, madeireiros e pequenos posseiros, caçadores e pescadores sempre esteve a cargo dos próprios indígenas, da Funai (que nem tem poder de polícia, mas os seus funcionários muitas vezes encaram situações perigosas), da Polícia Federal, do IBAMA (que tem poder de polícia) e, por fim, do Exército brasileiro.
Essa segurança tem sido no grosso positiva. Ao contrário dos alarmes das Ongs e do CIMI, somente uma porcentagem pequena das terras indígenas demarcadas e homologadas sofrem invasões; grande parte das invadidas por madeireiros, garimpeiros ou arrendatários o estão por anuência pecuniária com algumas lideranças indígenas mais ousadas e ambiciosas, que passam por cima do sentimento geral do seu próprio povo.
Mesmo assim, terras indígenas são de fato invadidas parcialmente, porém há muito mais terras ameaçadas de serem invadidas. A presença ostensiva das forças acima mencionadas, inclusive a mística protetora dos índios, é fundamental para garantir a segurança das terras indígenas e refrear as ambições de invasores.
Quando há decisão de expulsar invasores de uma determinada terra indígena, com frequência a Polícia Federal e o IBAMA estão a postos para auxiliar as equipes da Funai. Eu mesmo, como presidente da Funai, ordenei tais expedições em diversas terras indígenas, como as do Alto Guamá e Kayapó, no Pará, Arariboia, no Maranhão, Roosevelt e Urueuauau, em Rondônia, Yanomami, em Roraima, Panará e Mekragnoti, no Mato Grosso -- das que eu me lembre. Algumas delas vem sofrendo o retorno de invasores, como no Alto Guamá e na Yanomami -- e aí só com força policial muito forte é que os invasores serão expulsos.
Por sua vez, a segurança de nossas fronteiras sempre esteve a cargo de nossas Forças Armadas, em especial ao Exército. Há batalhões e pelotões do Exército em diversas terras indígenas do Amazonas. Essa presença é essencial para a proteção e segurança do Brasil, sem dúvida alguma. Só a presença do Exército já é importante para que não haja invasores de fora, nem de dentro. Vi isso claramente na região do Alto Rio Negro, em Yauareté.
O relacionamento das Forças Armadas com os povos indígenas tem sido pautado pela tradição do indigenismo rondoniano. Aliás, Rondon sendo um militar positivista não poderia deixar de incutir em seus pares e subordinados a visão que o consagrou de que os índios devem ser respeitados como povos autônomos, suas terras devem ser invioláveis, e, quando se precisar atravessar uma terra indígena, os índios terão que ser consultados sobre isso. O indigenismo rondoniano antecipa em muitos anos a Convenção 169, da OIT, que recomenda a consulta e o consentimento livre e informado dos índios em relação a projetos e ações que os afetem de algum modo.
Eis que, daqui por diante, num retrocesso ímpar, pelas ressalvas 5, 6 e 7, não se precisa mais consultar aos índios sobre essas e outras questões. O Exército não precisa mais consultar os índios sobre manobras militares realizadas em terras indígenas, não precisa mais nem avisá-los sobre suas ações. Por que não?
Considerando tudo isso, o conjunto das 20 ressalvas do STF veio emoldurado por um estranho sentimento de vingança figadal que trata os povos indígenas de uma forma desrespeitosa e, por que não dizer, atrasada e datada. Certamente que esse tipo de atitude, vindo da corte suprema do judiciário brasileiro não cabe no século XXI, no tempo após a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da Convenção 169/OIT, do próprio Estatuto do Índio e, sobretudo, da consagrada tradição rondoniana brasileira.
Regredimos ao século XIX, à legislação imperial em que as províncias comandavam a aplicação da política indigenista, em que a Igreja Católica enviava missionários para "catequisar" com vistas a "civilizar" os índios, a trazê-los para a ingerência miúda e perniciosa do Estado e dos seus entes federativos.
A corte suprema do judiciário brasileiro declarar que os índios não precisam ser consultados sobre a conveniência ou não de se construir uma estrada, uma hidrelétrica, uma linha de transmissão elétrica ou um prédio público em suas terras, ou uma missão militar mais contundente ou complexa -- é algo que não se via há muitos anos.
O desrespeito é evidente. Porém, pior do que o envólucro é o seu conteúdo. Muito pior são as ressalvas 17, 19 e 20.
Quanto tempo levará enquanto essas restrições produzam efeito antes de serem revogadas? Não sabemos. Por enquanto seus efeitos vão ser sentidos imediatamente. Dose cavalar para estancar o processo de demarcação de terras dos índios Guarani, Terena, Kaingang e outros.
Numa análise conjuntural, fica evidente que o STF produziu tais ressalvas de modo figadal como reação ao alarme criado pelas Ongs e pelo CIMI, nos últimos anos, de que o Brasil estaria levando os seus povos indígenas ao desespero, à miséria e à humilhação. A presença de Ongs internacionais em terras indígenas, a paúra amazônica, o sentimento de auto-depreciação do brasileiro elevaram os problemas indígenas a um patamar de alarme inacreditável. Não bastaram as vozes mais equilibradas, entre as quais eu modestamente me incluo. O fato é que o STF ditou novas regras e fez disso uma tragédia da política indigenista brasileira. Essa tragédia tem diagnóstico, estrutura e destino. A soberba das Ongs, do CIMI e do Ministério Público é vingada pelo STF.
Os índios perderam. A tradição indigenista rondoniana perdeu.
E pensar que tudo isso poderia ter sido evitado se prevalecesse a tradição indigenista rondoniana.
Antropólogo e ex-Presidente da FUNAI
As ressalvas do STF aqui analisadas neste Blog e numeradas como 17, 19 e 20, constituem a forca, a guilhotina, ou o garrote com o qual se decidiu dar cabo do processo de demarcação de terras indígenas e, ao mesmo tempo, fazer regredir a política e a tradição indigenista rondoniana para o século XIX.
As demais ressalvas contidas na decisão final do STF, ao término da votação sobre a legitimidade da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, constituem o cadafalso sobre o qual se instalou a mencionada forca, ou guilhotina, ou garrote.
São ressalvas que definem proibições e restrições do usufruto das riquezas da terra indígena por parte dos índios, determinando a presença inconsultável de forças policiais e militares, bem como do Instituto Chico Mendes.
Os índios não poderão, por exemplo, daqui por diante, fazer uma pequena faiscação de ouro ou alguma pedra preciosa (sem falar em diamantes, Deus me livre!) em suas terras, a não ser que tenha uma licença de garimpagem. Isso era permitido pelo Estatuto do Índio desde 1973. Não poderão mais entrar ou fazer uso (digamos caçar um tatu) em suas terras se elas também se constituírem parques ou reservas biológicas ou florestais, sem permissão explícita do Instituto Chico Mendes, nova instituição que se desmembrou do IBAMA. (Chico Mendes bem que estaria se remoendo em seu túmulo diante dessa norma restritiva imposta aos índios!)
Abrir uma rodovia atravessando uma terra indígena?? Moleza! Agora nem precisa comunicar aos índios, quando mais pedir-lhes permissão, ao menos aconxambrar as coisas! Haja estradas e rodovias a serem feitas pela Amazônia afora. Agora sai a rodovia que querem fazer atravessando a Ilha de Bananal, pois não?! E os índios não terão direito a um mínimo ressarcimento, um simples controle de passagem, um mísero pedágio pelas consequências ambientais e étnicas que advirão dessas estradas.
A segurança das terras indígenas contra invasores fazendeiros, mineradores, madeireiros e pequenos posseiros, caçadores e pescadores sempre esteve a cargo dos próprios indígenas, da Funai (que nem tem poder de polícia, mas os seus funcionários muitas vezes encaram situações perigosas), da Polícia Federal, do IBAMA (que tem poder de polícia) e, por fim, do Exército brasileiro.
Essa segurança tem sido no grosso positiva. Ao contrário dos alarmes das Ongs e do CIMI, somente uma porcentagem pequena das terras indígenas demarcadas e homologadas sofrem invasões; grande parte das invadidas por madeireiros, garimpeiros ou arrendatários o estão por anuência pecuniária com algumas lideranças indígenas mais ousadas e ambiciosas, que passam por cima do sentimento geral do seu próprio povo.
Mesmo assim, terras indígenas são de fato invadidas parcialmente, porém há muito mais terras ameaçadas de serem invadidas. A presença ostensiva das forças acima mencionadas, inclusive a mística protetora dos índios, é fundamental para garantir a segurança das terras indígenas e refrear as ambições de invasores.
Quando há decisão de expulsar invasores de uma determinada terra indígena, com frequência a Polícia Federal e o IBAMA estão a postos para auxiliar as equipes da Funai. Eu mesmo, como presidente da Funai, ordenei tais expedições em diversas terras indígenas, como as do Alto Guamá e Kayapó, no Pará, Arariboia, no Maranhão, Roosevelt e Urueuauau, em Rondônia, Yanomami, em Roraima, Panará e Mekragnoti, no Mato Grosso -- das que eu me lembre. Algumas delas vem sofrendo o retorno de invasores, como no Alto Guamá e na Yanomami -- e aí só com força policial muito forte é que os invasores serão expulsos.
Por sua vez, a segurança de nossas fronteiras sempre esteve a cargo de nossas Forças Armadas, em especial ao Exército. Há batalhões e pelotões do Exército em diversas terras indígenas do Amazonas. Essa presença é essencial para a proteção e segurança do Brasil, sem dúvida alguma. Só a presença do Exército já é importante para que não haja invasores de fora, nem de dentro. Vi isso claramente na região do Alto Rio Negro, em Yauareté.
O relacionamento das Forças Armadas com os povos indígenas tem sido pautado pela tradição do indigenismo rondoniano. Aliás, Rondon sendo um militar positivista não poderia deixar de incutir em seus pares e subordinados a visão que o consagrou de que os índios devem ser respeitados como povos autônomos, suas terras devem ser invioláveis, e, quando se precisar atravessar uma terra indígena, os índios terão que ser consultados sobre isso. O indigenismo rondoniano antecipa em muitos anos a Convenção 169, da OIT, que recomenda a consulta e o consentimento livre e informado dos índios em relação a projetos e ações que os afetem de algum modo.
Eis que, daqui por diante, num retrocesso ímpar, pelas ressalvas 5, 6 e 7, não se precisa mais consultar aos índios sobre essas e outras questões. O Exército não precisa mais consultar os índios sobre manobras militares realizadas em terras indígenas, não precisa mais nem avisá-los sobre suas ações. Por que não?
Considerando tudo isso, o conjunto das 20 ressalvas do STF veio emoldurado por um estranho sentimento de vingança figadal que trata os povos indígenas de uma forma desrespeitosa e, por que não dizer, atrasada e datada. Certamente que esse tipo de atitude, vindo da corte suprema do judiciário brasileiro não cabe no século XXI, no tempo após a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da Convenção 169/OIT, do próprio Estatuto do Índio e, sobretudo, da consagrada tradição rondoniana brasileira.
Regredimos ao século XIX, à legislação imperial em que as províncias comandavam a aplicação da política indigenista, em que a Igreja Católica enviava missionários para "catequisar" com vistas a "civilizar" os índios, a trazê-los para a ingerência miúda e perniciosa do Estado e dos seus entes federativos.
A corte suprema do judiciário brasileiro declarar que os índios não precisam ser consultados sobre a conveniência ou não de se construir uma estrada, uma hidrelétrica, uma linha de transmissão elétrica ou um prédio público em suas terras, ou uma missão militar mais contundente ou complexa -- é algo que não se via há muitos anos.
O desrespeito é evidente. Porém, pior do que o envólucro é o seu conteúdo. Muito pior são as ressalvas 17, 19 e 20.
Quanto tempo levará enquanto essas restrições produzam efeito antes de serem revogadas? Não sabemos. Por enquanto seus efeitos vão ser sentidos imediatamente. Dose cavalar para estancar o processo de demarcação de terras dos índios Guarani, Terena, Kaingang e outros.
Numa análise conjuntural, fica evidente que o STF produziu tais ressalvas de modo figadal como reação ao alarme criado pelas Ongs e pelo CIMI, nos últimos anos, de que o Brasil estaria levando os seus povos indígenas ao desespero, à miséria e à humilhação. A presença de Ongs internacionais em terras indígenas, a paúra amazônica, o sentimento de auto-depreciação do brasileiro elevaram os problemas indígenas a um patamar de alarme inacreditável. Não bastaram as vozes mais equilibradas, entre as quais eu modestamente me incluo. O fato é que o STF ditou novas regras e fez disso uma tragédia da política indigenista brasileira. Essa tragédia tem diagnóstico, estrutura e destino. A soberba das Ongs, do CIMI e do Ministério Público é vingada pelo STF.
Os índios perderam. A tradição indigenista rondoniana perdeu.
E pensar que tudo isso poderia ter sido evitado se prevalecesse a tradição indigenista rondoniana.
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