Em conversa sobre os atos secretos do Senado, alguém salientava com exasperação que se trata do descumprimento de uma norma que visa a permitir a vigilância quanto à observância das normas. Com efeito, há algo de peculiar e revelador nos fatos agora denunciados. Fazem-se normas para assegurar conduta ajustada ao bem público; como tais normas com frequência não são cumpridas, é preciso vigiar seu cumprimento. Faz-se então norma que manda dar publicidade às ações relevantes; mas as pessoas deixam de cumprir também essa norma. Que fazer? Norma mandando cumprir as normas?
O que a situação contém de confuso e mesmo paradoxal tem a ver com o fato de que normas cuja efetividade dependa de vigilância são precárias como normas, não sendo objeto da adesão pronta e supostamente espontânea que prescinde da reflexão e do cálculo. A vigilância, trazendo a ameaça de sanções de um tipo ou outro (punições ou prêmios) conforme a conduta se ajuste às normas ou delas se afaste, visa justamente a impor o cálculo nas decisões sobre como agir, o que implica salientar nessas decisões as considerações de interesse: se faço isso ou aquilo, que em princípio corresponde ao meu interesse, sofro consequências negativas (vou preso...) e meu interesse é fortemente contrariado, melhor não fazer - a menos que possa esconder o meu ato.
Num livro de anos atrás, "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", Wolfgang Schluchter propõe a distinção entre moralidade, entendida como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como de natureza coletiva e, em alguma medida, convencional. Apesar do paradoxo envolvido na ideia importante de uma moralidade não convencional, em que o indivíduo pondere os princípios de sua conduta de maneira reflexiva e autônoma perante a coletividade, a questão prévia e decisiva de como se caracteriza, do ponto de vista moral-ético, a política (ou a economia, ou a vida privada em geral) é a de tornar convencionais certas regras - fazer que elas se transformem propriamente numa ética, no sentido de Schluchter, difundindo-se na coletividade e tornando automática, natural e irrefletida a adesão a elas no plano da moralidade dos indivíduos, justamente, em grau importante, pela pressão difusa da coletividade.
A indagação complicada que os atos secretos sugerem é a de como lidar com as limitações da ética coletiva no condicionamento das ações dos indivíduos (de sua moralidade), o que envolve o reconhecimento de que essa ética pode ela própria ser precária como tal, ou seja, em sua difusão e penetração junto à coletividade. Resta, nesse caso, a possibilidade de que, em vez de contar com a adesão moral às normas e seus efeitos na motivação das pessoas, a intensificação da vigilância (que supõe o "artificialismo" da ação legal e institucional da aparelhagem do Estado) altere "apropriadamente" essa motivação por meio dos fatores cognitivos associados ao cálculo dos interesses. Com a eficácia da fiscalização e das sanções ocorrendo de maneira duradoura e corroborando regularmente as expectativas correspondentes que os agentes venham a desenvolver, pode-se eventualmente chegar ao que promete velho preceito sociológico: expectativas que se reiteram e corroboram acabam por se transformar em prescrições ou normas, e o resultado seria propriamente uma cultura ou ética efetiva.
Infelizmente, além da perspectiva de longo prazo e o que pode conter de desalentador, há pelo menos um aspecto adicional nas complicações do assunto. Pois a aposta em percepções e expectativas (cognitivas) que acabem por transformar-se em boas normas esquece algo que as análises e pesquisas mostram há tempos, isto é, o fato de que fatores de ordem cognitiva remetem a um problema de coordenação que se acha na raiz da própria precariedade da situação de que se parte. Se a consolidação das normas em normas reais e mesmo a eficácia da vigilância dependem amplamente da ação dos demais, que tende geralmente a ser ação "esperta" e orientada pelo interesse próprio, estarei sendo simplesmente otário ou trouxa ao agir de maneira moral e condizente com uma ética que na realidade não prevalece. Em outras palavras, até mesmo a percepção que eu chegue a ter da conexão entre minha ação imediata e meu interesse maior dependerá da percepção do grau em que existe uma cultura ou ética efetiva.
Como não cabe contar com a "conversão" mais ou menos súbita e convergente de todos, não há alternativa verdadeira à aposta nos artificialismos da ação estatal, com seu componente repressivo, e no eventual amadurecimento e frutificação "culturais" deles em direção propícia. De toda maneira, o problema a esclarecer não é o de que se chegue a ter atos secretos no Senado (que surgem, de certa forma, como uma espécie de cereja do bolo dos nossos muitos desregramentos menos ou mais recentes), mas antes o do que estará por detrás de algo mais que aqui tenho lembrado às vezes: o fato de que o Brasil, em pesquisas que se repetem há anos, é com sobras o campeão mundial na proporção dos que pensam que, em geral, não se pode confiar nas pessoas. O que sugere uma cultura "errada" já enraizada com força especial.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
O que a situação contém de confuso e mesmo paradoxal tem a ver com o fato de que normas cuja efetividade dependa de vigilância são precárias como normas, não sendo objeto da adesão pronta e supostamente espontânea que prescinde da reflexão e do cálculo. A vigilância, trazendo a ameaça de sanções de um tipo ou outro (punições ou prêmios) conforme a conduta se ajuste às normas ou delas se afaste, visa justamente a impor o cálculo nas decisões sobre como agir, o que implica salientar nessas decisões as considerações de interesse: se faço isso ou aquilo, que em princípio corresponde ao meu interesse, sofro consequências negativas (vou preso...) e meu interesse é fortemente contrariado, melhor não fazer - a menos que possa esconder o meu ato.
Num livro de anos atrás, "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", Wolfgang Schluchter propõe a distinção entre moralidade, entendida como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como de natureza coletiva e, em alguma medida, convencional. Apesar do paradoxo envolvido na ideia importante de uma moralidade não convencional, em que o indivíduo pondere os princípios de sua conduta de maneira reflexiva e autônoma perante a coletividade, a questão prévia e decisiva de como se caracteriza, do ponto de vista moral-ético, a política (ou a economia, ou a vida privada em geral) é a de tornar convencionais certas regras - fazer que elas se transformem propriamente numa ética, no sentido de Schluchter, difundindo-se na coletividade e tornando automática, natural e irrefletida a adesão a elas no plano da moralidade dos indivíduos, justamente, em grau importante, pela pressão difusa da coletividade.
A indagação complicada que os atos secretos sugerem é a de como lidar com as limitações da ética coletiva no condicionamento das ações dos indivíduos (de sua moralidade), o que envolve o reconhecimento de que essa ética pode ela própria ser precária como tal, ou seja, em sua difusão e penetração junto à coletividade. Resta, nesse caso, a possibilidade de que, em vez de contar com a adesão moral às normas e seus efeitos na motivação das pessoas, a intensificação da vigilância (que supõe o "artificialismo" da ação legal e institucional da aparelhagem do Estado) altere "apropriadamente" essa motivação por meio dos fatores cognitivos associados ao cálculo dos interesses. Com a eficácia da fiscalização e das sanções ocorrendo de maneira duradoura e corroborando regularmente as expectativas correspondentes que os agentes venham a desenvolver, pode-se eventualmente chegar ao que promete velho preceito sociológico: expectativas que se reiteram e corroboram acabam por se transformar em prescrições ou normas, e o resultado seria propriamente uma cultura ou ética efetiva.
Infelizmente, além da perspectiva de longo prazo e o que pode conter de desalentador, há pelo menos um aspecto adicional nas complicações do assunto. Pois a aposta em percepções e expectativas (cognitivas) que acabem por transformar-se em boas normas esquece algo que as análises e pesquisas mostram há tempos, isto é, o fato de que fatores de ordem cognitiva remetem a um problema de coordenação que se acha na raiz da própria precariedade da situação de que se parte. Se a consolidação das normas em normas reais e mesmo a eficácia da vigilância dependem amplamente da ação dos demais, que tende geralmente a ser ação "esperta" e orientada pelo interesse próprio, estarei sendo simplesmente otário ou trouxa ao agir de maneira moral e condizente com uma ética que na realidade não prevalece. Em outras palavras, até mesmo a percepção que eu chegue a ter da conexão entre minha ação imediata e meu interesse maior dependerá da percepção do grau em que existe uma cultura ou ética efetiva.
Como não cabe contar com a "conversão" mais ou menos súbita e convergente de todos, não há alternativa verdadeira à aposta nos artificialismos da ação estatal, com seu componente repressivo, e no eventual amadurecimento e frutificação "culturais" deles em direção propícia. De toda maneira, o problema a esclarecer não é o de que se chegue a ter atos secretos no Senado (que surgem, de certa forma, como uma espécie de cereja do bolo dos nossos muitos desregramentos menos ou mais recentes), mas antes o do que estará por detrás de algo mais que aqui tenho lembrado às vezes: o fato de que o Brasil, em pesquisas que se repetem há anos, é com sobras o campeão mundial na proporção dos que pensam que, em geral, não se pode confiar nas pessoas. O que sugere uma cultura "errada" já enraizada com força especial.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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