quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Lula e os conflitos entre Poderes

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Daqui há alguns anos os especialistas terão mais clareza para explicar o fenômeno, mas é possível registrá-lo com todos os detalhes neste sétimo ano de governo Lula, quarto a partir de 2005, quando o escândalo do mensalão, que atingiu em cheio o seu partido, o PT, foi sucedido de um contraditório e constante aumento da popularidade do presidente da República. O dado número um desse período é esse: a maior crise política do primeiro governo de Lula, em 2005, foi o ponto inicial de uma curva sempre ascendente de popularidade do titular do governo. O dado número dois é que as crises políticas, desde então, têm convivido com a popularidade do presidente. O último dado é que elas são constantes: as situações que envolvem especialmente a política criam focos de atrito do governo ora com o Legislativo, ora com o Judiciário. Existem fontes de tensão permanentes. Essa dificuldade de transitar conflitos com outros poderes deram ao governo Lula pós-2005 características próprias, diferenciadas dos governos anteriores: o maior fator de estabilidade tem sido, de fato, a popularidade do presidente. Essa fórmula de equilíbrio fundada em uma relação com eleitor, diga-se, hegemônica, não seria de equilíbrio se as regras democráticas tivessem sido quebradas. Felizmente não foram. Têm se mantido no estrito âmbito do voto.

Outra informação a ser extraída desse período é o fato de as dificuldades de trânsito com outros poderes acontecerem independentemente das facilidades que teoricamente o governo poderia ter, em alguns momentos, no jogo institucional. No Congresso, por exemplo, a negociação com o PMDB, em vez de dotar o governo da estabilidade parlamentar que ele não conseguia ajuntando pequenos partidos inorgânicos, acabou jogando o governo em crises políticas no Legislativo que sequer eram de sua lavra, sem obter solidez na sua base parlamentar. No Supremo Tribunal Federal (STF), nomeou sete dos seus onze membros - e ainda assim enfrenta crescentes dificuldades na alta Corte, em especial a partir da posse do seu atual presidente, Gilmar Mendes.

O ano de 2005 foi um marco. Até então, havia um total descompasso administrativo, atribuído por integrantes do governo à excessiva partidarização da máquina e à transferência dos conflitos internos do PT para dentro do governo, polarizados então entre o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Depois do escândalo do mensalão e do envolvimento de Palocci no caso da quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa, um rearranjo interno desmontou o anterior, que se equilibrava em conflitos petistas, trocando-o por uma estrutura firmada em gestores de projetos mais coordenados entre si e avalizados pela determinação presidencial de que executassem seus orçamentos - a queda de Palocci foi o fim, igualmente, da cultura de que superávits primários elevados deveriam prevalecer sobre qualquer outra determinação de governo. Os avanços gerenciais foram feitos em torno de projetos que, acanhados do ponto de vista orçamentário, mostraram potencial de popularizar o governo justo no momento em que a crise política do mensalão ocupava o espaço institucional. Foi o caso do Bolsa Família, das políticas para a agricultura familiar, do Luz para Todos e de outros programas sociais.

A ascensão da popularidade de Lula, que garantiu o seu segundo mandato apenas meses depois de ter sido sentenciado ao impeachment pela oposição, os resultados dos programas com maior foco e melhor gestão e o fim de polos de conflito interno deram ao segundo governo uma maior desenvoltura administrativa. Após 2006 a administração teve mais ritmo e obteve mais resultados que o primeiro, marcado por enorme paralisia. Em compensação, o governo Lula, depois de 2005, acumulou enormes problemas na gestão de conflitos com outros poderes.

A crise política de 2005 foi também o marco na definição do perfil da oposição parlamentar: depois da CPI do Mensalão, o discurso de grande confronto (que havia marcado o cenário eleitoral de 2002) migrou para o Congresso; o governo, que se equilibrava numa base parlamentar instável, de parlamentares do PT e pequenos partidos de esquerda e de direita, passou a ter dificuldades ainda maiores de transitar projetos de seu interesse.

Do ponto de vista do Judiciário, uma tendência crescente à ampliação de funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal, que se acentuou na presidência de Nelson Jobim na Corte (2004-2006), foi somada a momentos de conflito aberto com o Executivo. O julgamento do pedido de extradição do italiano Cesare Battisti, no dia 9, foi um deles. Curiosamente, foi posto em julgamento o direito que o ministro da Justiça tem de conceder refúgio - uma decisão divergente das anteriores, inclusive daquela que, em 2007, deu status de refugiado político ao colombiano Antonio Cadenas Collazzos, o Padre Medina, ligado às Farc. O voto do ministro Cezar Peluso no julgamento do pedido de extradição do italiano Cesare Battisti, por exemplo, não julga apenas o pedido de extradição, mas o próprio ministro da Justiça, Tarso Genro, acusado de "raciocínio fantasioso", "ilegalidades ruidosas" etc.

Nos governos Fernando Henrique Cardoso, houve uma incomum convergência ideológica entre as forças hegemônicas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Certamente isso não ocorreu no governo Lula e essa situação foi agravada depois de 2005. O governo tem se sustentado na alta popularidade de seu líder, mas sem que essa estabilidade tenha correspondência nas suas relações com outros poderes. A causa mais clara para esse descompasso é, sem dúvida, a de raiz ideológica, mas esse descompasso poderia ter sido menor se o PT tivesse conseguido exercer o papel de dar um "impulso orgânico" ao governo. O PT estava em crise desde 1998, tinha graves problemas internos quando ascendeu ao governo, em 2002, levou-os para dentro do Planalto e não conseguiu fazer a transição de partido de oposição para partido governista - quando estava fazendo, foi atingido brutalmente pelo mensalão. E impôs-se, depois disso, uma posição de contrição em relação a Lula. A perda de massa orgânica pode ter sido ruim para ambos, partido e Lula, pois o partido não conseguiu assumir uma posição que lhe permita mediar politicamente os conflitos no Congresso ou dar densidade política a uma discussão em torno, por exemplo, das indicações para o STF.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras.

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