DEU NO VALOR ECONÔMICO
Enquanto contemplamos a movimentação ainda incerta para as eleições do próximo ano e a notável e confusa vacilação do Estado brasileiro com respeito à extradição de Caesare Battisti, convido o leitor a um alargamento especial da perspectiva de tempo no exame de temas de grande relevância potencial para questões contemporâneas. Tivemos há pouco o prêmio Nobel de economia concedido a Elinor Ostrom, representante de uma corrente empenhada em trazer ao tratamento de temas de economia e política uma visão interdisciplinar ambiciosa, que inclui a biologia evolucionária e tem um de seus pontos de apoio na ideia de que a evolução fez de nós "a espécie cooperativa", em que a disposição à reciprocidade e à colaboração contrabalançaria o ânimo competitivo. Um livro recentíssimo do linguista Derek Bickerton, "A Língua de Adão" ("Adam´s Tongue", 2009), intelectualmente ousado e saborosamente polêmico, pesquisa a origem da linguagem humana na remota pré-história da espécie. Ele a encontra no nicho construído a partir da comunicação necessária ao recrutamento de números suficientes para que fosse possível disputar com êxito às feras e abutres a proteína disponível nas carcassas dos animais de grande porte: nossos ancestrais se teriam tornado carniceiros atrevidos (dedicados a "aggressive scavenging" ou "power scavenging"), depois de terem sido os últimos dos carniceiros, resignados a retirar o tutano das ossadas que sobravam da voracidade dos demais.
O desenvolvimento da linguagem surge como decisivo na visão da construção de nosso nicho singular, com o que a ideia dessa construção envolve de participação ativa da espécie (e das espécies em geral) na evolução, em vez da mera acomodação ao determinismo das condições ambientais. Na "coevolução genético-cultural" de que outros têm falado, a articulação de ida e volta entre genes e cultura permite o desenvolvimento da inteligência. E com esse desenvolvimento, entre muitas outras coisas, a passagem para a fabricação de armas e a transição de meros carniceiros a caçadores, e eventualmente, cerca de dez milênios atrás, a revolução neolítica e o surgimento da agricultura sedentária, das cidades e do governo.
A propósito dessa última virada, a antropologia e a sociologia há muito se ocupam de algo que adquire certa feição paradoxal e que Bickerton retoma sob um ângulo peculiar num epílogo de tom pessimista. Trata-se de que, enquanto as condições entrevistas nas brumas anteriores ao período neolítico indicam a perambulação livre de comunidades igualitárias, a ocorrência da agricultura sedentária e do governo centralizado, associados com concentração de recursos e formas rígidas de estratificação social geral, traz o poder. E o recrutamento, por exemplo, que surge cinematograficamente em Bickerton como a convocação de hordas dispersas para a briga com hienas e ferozes dentes de sabre, aparece na sociologia do trabalho dedicada a sociedades "camponesas" de agricultura sedentária (e que o governo centralizado permite considerar politicamente "desenvolvidas") como distinguido por características "familiais" ou "custodiais", em que traços de rigidez e desigualdade ou dominação se fazem presentes.
Naturalmente, é claro o sentido em que a expansão do âmbito ou alcance da colaboração, que o governo unificado de comunidades amplas permite, representa um avanço do ponto de vista de objetivos eventualmente identificáveis como próprios da comunidade como tal, em correspondência com a atenuação que ela realiza da disposição à competição e ao conflito internos. Mas as vicissitudes dos Estados organizados no período histórico, dos grandes impérios burocráticos agrários (ou excepcionalmente mesmo da democracia de Atenas com seu "camponês-cidadão", de que fala Ellen M. Wood) até as sociedades industriais e pós-industriais dos nossos dias, podem ser vistas como a expressão da luta pelo equilíbrio entre o valor da igualdade perdida e o da solidariedade politicamente expandida.
O epílogo mencionado de Bickerton retoma o problema geral em perspectiva evolutiva. Partindo do paralelismo entre a forma de subsistência que teria dado origem à linguagem entre nós e a das formigas e seu sistema de comunicação (o aproveitamento de carcassas de grande porte relativo), Bickerton observa que chegamos a construir cidades-formigueiro - e a produzir automatismos potencialmente antidemocráticos em que um processo evolutivo que continua a desdobrar-se viria selecionando há milênios contra os membros mais independentes e individualistas e em favor da convergência e solidariedade. Quando acabarmos de entender as eventuais mudanças genéticas resultantes, o mal pode estar feito: "Não são necessárias muitas gerações para transformar um lobo em cão".
Fantasias, talvez, de um linguista meio lunático. E contemplar o futuro em nossa ação de hoje já se mostra difícil mesmo quanto aos temas ambientalistas que remetem a um futuro mais próximo. De todo modo, eliminar o "lobo do homem" no homem tem sido o tema central da reflexão da filosofia política não só desde Hobbes, e a dialética entre solidariedade e estímulos à competição e ao conflito é complicada: não se pode apostar sem mais que a questão da ética na política tenda a resolver-se com a vitória de um liberalismo esclarecido sobre a pressão ao conformismo, sobretudo nesta época de terroristas dispostos ao suicídio em nome da fé compartilhada, que confunde até os Estados de maior tradição liberal. Resta, quando nada, insistir em que não cabe reduzir a ética, como em certo "republicanismo", à convergência e à adesão convencional a normas. E afirmar, ao contrário, a superioridade de condições que assegurem a reflexão e o distanciamento crítico, mesmo se capazes de mobilizar o ingrediente cooperativo do nosso legado evolutivo para garantir que as normas próprias e autônomas sejam também responsáveis.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Enquanto contemplamos a movimentação ainda incerta para as eleições do próximo ano e a notável e confusa vacilação do Estado brasileiro com respeito à extradição de Caesare Battisti, convido o leitor a um alargamento especial da perspectiva de tempo no exame de temas de grande relevância potencial para questões contemporâneas. Tivemos há pouco o prêmio Nobel de economia concedido a Elinor Ostrom, representante de uma corrente empenhada em trazer ao tratamento de temas de economia e política uma visão interdisciplinar ambiciosa, que inclui a biologia evolucionária e tem um de seus pontos de apoio na ideia de que a evolução fez de nós "a espécie cooperativa", em que a disposição à reciprocidade e à colaboração contrabalançaria o ânimo competitivo. Um livro recentíssimo do linguista Derek Bickerton, "A Língua de Adão" ("Adam´s Tongue", 2009), intelectualmente ousado e saborosamente polêmico, pesquisa a origem da linguagem humana na remota pré-história da espécie. Ele a encontra no nicho construído a partir da comunicação necessária ao recrutamento de números suficientes para que fosse possível disputar com êxito às feras e abutres a proteína disponível nas carcassas dos animais de grande porte: nossos ancestrais se teriam tornado carniceiros atrevidos (dedicados a "aggressive scavenging" ou "power scavenging"), depois de terem sido os últimos dos carniceiros, resignados a retirar o tutano das ossadas que sobravam da voracidade dos demais.
O desenvolvimento da linguagem surge como decisivo na visão da construção de nosso nicho singular, com o que a ideia dessa construção envolve de participação ativa da espécie (e das espécies em geral) na evolução, em vez da mera acomodação ao determinismo das condições ambientais. Na "coevolução genético-cultural" de que outros têm falado, a articulação de ida e volta entre genes e cultura permite o desenvolvimento da inteligência. E com esse desenvolvimento, entre muitas outras coisas, a passagem para a fabricação de armas e a transição de meros carniceiros a caçadores, e eventualmente, cerca de dez milênios atrás, a revolução neolítica e o surgimento da agricultura sedentária, das cidades e do governo.
A propósito dessa última virada, a antropologia e a sociologia há muito se ocupam de algo que adquire certa feição paradoxal e que Bickerton retoma sob um ângulo peculiar num epílogo de tom pessimista. Trata-se de que, enquanto as condições entrevistas nas brumas anteriores ao período neolítico indicam a perambulação livre de comunidades igualitárias, a ocorrência da agricultura sedentária e do governo centralizado, associados com concentração de recursos e formas rígidas de estratificação social geral, traz o poder. E o recrutamento, por exemplo, que surge cinematograficamente em Bickerton como a convocação de hordas dispersas para a briga com hienas e ferozes dentes de sabre, aparece na sociologia do trabalho dedicada a sociedades "camponesas" de agricultura sedentária (e que o governo centralizado permite considerar politicamente "desenvolvidas") como distinguido por características "familiais" ou "custodiais", em que traços de rigidez e desigualdade ou dominação se fazem presentes.
Naturalmente, é claro o sentido em que a expansão do âmbito ou alcance da colaboração, que o governo unificado de comunidades amplas permite, representa um avanço do ponto de vista de objetivos eventualmente identificáveis como próprios da comunidade como tal, em correspondência com a atenuação que ela realiza da disposição à competição e ao conflito internos. Mas as vicissitudes dos Estados organizados no período histórico, dos grandes impérios burocráticos agrários (ou excepcionalmente mesmo da democracia de Atenas com seu "camponês-cidadão", de que fala Ellen M. Wood) até as sociedades industriais e pós-industriais dos nossos dias, podem ser vistas como a expressão da luta pelo equilíbrio entre o valor da igualdade perdida e o da solidariedade politicamente expandida.
O epílogo mencionado de Bickerton retoma o problema geral em perspectiva evolutiva. Partindo do paralelismo entre a forma de subsistência que teria dado origem à linguagem entre nós e a das formigas e seu sistema de comunicação (o aproveitamento de carcassas de grande porte relativo), Bickerton observa que chegamos a construir cidades-formigueiro - e a produzir automatismos potencialmente antidemocráticos em que um processo evolutivo que continua a desdobrar-se viria selecionando há milênios contra os membros mais independentes e individualistas e em favor da convergência e solidariedade. Quando acabarmos de entender as eventuais mudanças genéticas resultantes, o mal pode estar feito: "Não são necessárias muitas gerações para transformar um lobo em cão".
Fantasias, talvez, de um linguista meio lunático. E contemplar o futuro em nossa ação de hoje já se mostra difícil mesmo quanto aos temas ambientalistas que remetem a um futuro mais próximo. De todo modo, eliminar o "lobo do homem" no homem tem sido o tema central da reflexão da filosofia política não só desde Hobbes, e a dialética entre solidariedade e estímulos à competição e ao conflito é complicada: não se pode apostar sem mais que a questão da ética na política tenda a resolver-se com a vitória de um liberalismo esclarecido sobre a pressão ao conformismo, sobretudo nesta época de terroristas dispostos ao suicídio em nome da fé compartilhada, que confunde até os Estados de maior tradição liberal. Resta, quando nada, insistir em que não cabe reduzir a ética, como em certo "republicanismo", à convergência e à adesão convencional a normas. E afirmar, ao contrário, a superioridade de condições que assegurem a reflexão e o distanciamento crítico, mesmo se capazes de mobilizar o ingrediente cooperativo do nosso legado evolutivo para garantir que as normas próprias e autônomas sejam também responsáveis.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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