DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Em meio ao otimismo oficial, artigo recente do economista Reynaldo Gonçalves chamou a atenção para a mediocridade do desempenho econômico brasileiro nos últimos anos. Em 2009, a participação da economia brasileira no produto mundial era de 2,79%, menos do que os 2,81% que atingia em 2002, último ano do período Cardoso.
Quer dizer, depois de sete anos de ambiente externo extremamente favorável, o crescimento econômico ocorrido no período Lula, cerca de 3,6 % ao ano, não foi suficiente sequer para manter a parte que tínhamos na economia mundial em 2002. Crescemos, é verdade, mas menos que o resto do mundo. E se olharmos para um período mais longo o resultado é pior ainda. Em 1980, já no final do período nacional-desenvolvimentista, o Brasil tinha porção maior na produção mundial, de 3,6%.
O desempenho econômico medíocre não apaga, certamente, as extraordinárias conquistas dos últimos decênios. A democracia, em primeiro lugar, mas também a estabilidade monetária, a redução paulatina da desigualdade de renda, a expansão dos sistemas públicos de educação e saúde, a ampliação da rede de proteção social às camadas mais pobres da população, etc.
Tais conquistas não deixam dúvidas de que o Brasil contemporâneo, de 1995 para cá, é um país muito melhor do que o da Era Vargas.
Ainda assim, a redução da participação brasileira no produto mundial sugere que não temos conseguido combinar bem crescimento econômico, distribuição e estabilidade. Esta combinação nunca é tarefa fácil, mas entre nós tem sido particularmente difícil. É que cada um desses fenômenos consta como valor central de um dos três diferentes ideários econômicos que têm orientado as correntes políticas que disputam o poder de Estado desde 1988. Desses ideários, o mais discernível — porque teoricamente codificado e politicamente denegrido — é o neoliberal; ele tem sido o principal portador da demanda em favor da ‘estabilidade monetária’. Um segundo ideário, o da ‘inserção competitiva’, tem muito menos nitidez conceitual e política; suas diversas formulações são tentativas de ajustar o projeto do velho desenvolvimentismo — constituir no Brasil um sistema produtivo diversificado e integrado — ao novo contexto mundial em que predomina o liberalismo e a competição em escala global; sua demanda principal tem sido por investimento produtivo. Por último, distingue-se o estatismo-distributivo, que procura combinar presença forte do Estado, inclusive na produção, com ênfase em uma ‘democracia substantiva’ com repartição da renda para os assalariados e ‘excluídos’; o lema central deste ideário é a distribuição.
Embora cada um destes ideários seja predominante em distintos atores sociais e partidos políticos, nenhum governo brasileiro, desde os anos 1990 até agora, foi dominado de forma exclusiva e consistente por qualquer deles. A mescla de ideários, o sincretismo das orientações presentes nos governos desde os 1990 resulta, é claro, das alianças e conciliação entre as distintas forças em disputa; em nossos governos de coalizão tais forças têm assumido o comando sobre diferentes áreas do aparelho de Estado.
No governo atual, a política externa tem conservado as diretrizes estratégicas de integração competitiva, traçadas nos anos 1990, estratégia que reforça os laços com os vizinhos sul-americanos e busca participar ativamente dos regimes e organismos internacionais, almejando projeção suficiente para ter parte relevante na gestão da ordem mundial. De resto, apesar da retórica desenvolvimentista e das realizações do BNDES, o nível de investimento público tem sido muito baixo; as realizações maiores têm se orientado pelo neoliberalismo — ilhado no Banco Central — e, principalmente, pelo ideário do ‘estatismo-distributivo’, com a particularidade da repartição estar ocorrendo não tanto em favor dos ‘excluídos’ como em benefício do funcionalismo da União, agraciado desde 2008 com aumentos salariais extraordinários. A continuação deste tipo de arranjo político tende a nos manter ‘no rumo certo’ mas sem uma velocidade elevada e sustentável.
A escolha de novos governantes — a ser decidida em outubro/novembro — dá para a sociedade brasileira a oportunidade de viabilizar uma mudança de rumo. Há certo consenso de que a aceleração do crescimento sem perda de estabilidade depende hoje de uma elevação significativa do investimento. Mais ainda, a despeito das divergências em relação a políticas específicas — a cambial, por exemplo — tem havido uma convergência significativa entre os participantes do debate público em torno do ideário de ‘inserção competitiva’. De fato, mesmo entre as forças partidárias em luta, aposta-se mais em políticas de Estado que possam aumentar a competitividade do sistema produtivo instalado no Brasil e, por essa via, elevem sua participação no produto mundial. A tarefa, porém, é ciclópica. J. R. Mendonça de Barros, em artigo publicado em 5/04 em O Estado de S. Paulo, sintetizou bem as deficiências em logística, energia, sistema tributário e educação a serem superadas para dar competitividade ao país. Isso para não mencionar a legislação previdenciária e outros problemas crônicos que nos assolam.
Frente à enormidade de tais tarefas, não basta vencer as eleições nem escolher as políticas “mais eficientes”; é preciso ter consistência e, mais que tudo, há que convencer os atores relevantes mas divergentes em relação a tais prioridades. Isso é o mais difícil, mas absolutamente crítico em regime democrático. Sem isso, governa-se dispersando esforços, atendendo às diversas clientelas mas não ao pais que aspiramos a construir.
Brasilio Sallum Jr., é "professor do Departamento de Sociologia da USP.
Em meio ao otimismo oficial, artigo recente do economista Reynaldo Gonçalves chamou a atenção para a mediocridade do desempenho econômico brasileiro nos últimos anos. Em 2009, a participação da economia brasileira no produto mundial era de 2,79%, menos do que os 2,81% que atingia em 2002, último ano do período Cardoso.
Quer dizer, depois de sete anos de ambiente externo extremamente favorável, o crescimento econômico ocorrido no período Lula, cerca de 3,6 % ao ano, não foi suficiente sequer para manter a parte que tínhamos na economia mundial em 2002. Crescemos, é verdade, mas menos que o resto do mundo. E se olharmos para um período mais longo o resultado é pior ainda. Em 1980, já no final do período nacional-desenvolvimentista, o Brasil tinha porção maior na produção mundial, de 3,6%.
O desempenho econômico medíocre não apaga, certamente, as extraordinárias conquistas dos últimos decênios. A democracia, em primeiro lugar, mas também a estabilidade monetária, a redução paulatina da desigualdade de renda, a expansão dos sistemas públicos de educação e saúde, a ampliação da rede de proteção social às camadas mais pobres da população, etc.
Tais conquistas não deixam dúvidas de que o Brasil contemporâneo, de 1995 para cá, é um país muito melhor do que o da Era Vargas.
Ainda assim, a redução da participação brasileira no produto mundial sugere que não temos conseguido combinar bem crescimento econômico, distribuição e estabilidade. Esta combinação nunca é tarefa fácil, mas entre nós tem sido particularmente difícil. É que cada um desses fenômenos consta como valor central de um dos três diferentes ideários econômicos que têm orientado as correntes políticas que disputam o poder de Estado desde 1988. Desses ideários, o mais discernível — porque teoricamente codificado e politicamente denegrido — é o neoliberal; ele tem sido o principal portador da demanda em favor da ‘estabilidade monetária’. Um segundo ideário, o da ‘inserção competitiva’, tem muito menos nitidez conceitual e política; suas diversas formulações são tentativas de ajustar o projeto do velho desenvolvimentismo — constituir no Brasil um sistema produtivo diversificado e integrado — ao novo contexto mundial em que predomina o liberalismo e a competição em escala global; sua demanda principal tem sido por investimento produtivo. Por último, distingue-se o estatismo-distributivo, que procura combinar presença forte do Estado, inclusive na produção, com ênfase em uma ‘democracia substantiva’ com repartição da renda para os assalariados e ‘excluídos’; o lema central deste ideário é a distribuição.
Embora cada um destes ideários seja predominante em distintos atores sociais e partidos políticos, nenhum governo brasileiro, desde os anos 1990 até agora, foi dominado de forma exclusiva e consistente por qualquer deles. A mescla de ideários, o sincretismo das orientações presentes nos governos desde os 1990 resulta, é claro, das alianças e conciliação entre as distintas forças em disputa; em nossos governos de coalizão tais forças têm assumido o comando sobre diferentes áreas do aparelho de Estado.
No governo atual, a política externa tem conservado as diretrizes estratégicas de integração competitiva, traçadas nos anos 1990, estratégia que reforça os laços com os vizinhos sul-americanos e busca participar ativamente dos regimes e organismos internacionais, almejando projeção suficiente para ter parte relevante na gestão da ordem mundial. De resto, apesar da retórica desenvolvimentista e das realizações do BNDES, o nível de investimento público tem sido muito baixo; as realizações maiores têm se orientado pelo neoliberalismo — ilhado no Banco Central — e, principalmente, pelo ideário do ‘estatismo-distributivo’, com a particularidade da repartição estar ocorrendo não tanto em favor dos ‘excluídos’ como em benefício do funcionalismo da União, agraciado desde 2008 com aumentos salariais extraordinários. A continuação deste tipo de arranjo político tende a nos manter ‘no rumo certo’ mas sem uma velocidade elevada e sustentável.
A escolha de novos governantes — a ser decidida em outubro/novembro — dá para a sociedade brasileira a oportunidade de viabilizar uma mudança de rumo. Há certo consenso de que a aceleração do crescimento sem perda de estabilidade depende hoje de uma elevação significativa do investimento. Mais ainda, a despeito das divergências em relação a políticas específicas — a cambial, por exemplo — tem havido uma convergência significativa entre os participantes do debate público em torno do ideário de ‘inserção competitiva’. De fato, mesmo entre as forças partidárias em luta, aposta-se mais em políticas de Estado que possam aumentar a competitividade do sistema produtivo instalado no Brasil e, por essa via, elevem sua participação no produto mundial. A tarefa, porém, é ciclópica. J. R. Mendonça de Barros, em artigo publicado em 5/04 em O Estado de S. Paulo, sintetizou bem as deficiências em logística, energia, sistema tributário e educação a serem superadas para dar competitividade ao país. Isso para não mencionar a legislação previdenciária e outros problemas crônicos que nos assolam.
Frente à enormidade de tais tarefas, não basta vencer as eleições nem escolher as políticas “mais eficientes”; é preciso ter consistência e, mais que tudo, há que convencer os atores relevantes mas divergentes em relação a tais prioridades. Isso é o mais difícil, mas absolutamente crítico em regime democrático. Sem isso, governa-se dispersando esforços, atendendo às diversas clientelas mas não ao pais que aspiramos a construir.
Brasilio Sallum Jr., é "professor do Departamento de Sociologia da USP.
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