Com estrutura e dinâmica de guerrilha, os ataques, embora aparentemente desestruturados, na verdade se baseiam na eficiência da delinquência estruturada
Faz 45 anos que Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, revelou-nos Elis Regina na mística poesia da pesca de arrastão, na ternura do tempo da espera e da esperança: "Eh! tem jangada no mar. Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão". Curiosa trajetória das palavras nas nossas conturbadas travessias, da esperança ao desespero dos arrastões em prédios, praias, hotéis, congestionamentos e até restaurantes, como se viu nas últimas semanas. Mas também no oportunismo publicitário em cima da desgraça alheia: "Arrastão de saldos!", li num anúncio há pouco tempo.
Tornamos equivalente o que equivalente não é, no autoengano que expressa nosso imaginário rico e criativo e transita com facilidade entre carnaval e quaresma, sem gradações nem indagações. Num dos assaltos de arrastão, nestes últimos dias, em restaurante da Vila Madalena, um dos ladrões até julgou oportuno explicar-se a suas vítimas: se tivesse alternativa, não estaria fazendo aquilo. É o ladrão bonzinho, o bom ladrão da nossa cruz de cada dia. Uma de minhas alunas, assaltada na Avenida Paulista por um adolescente armado, à luz do dia, vendo-o atrapalhado e temendo o pior, ajudou-o a roubá-la, indicando o que tinha, quanto tinha e onde tinha, para facilitar e apressar o assalto. Como o dinheiro era pouco, ainda lhe deu a passagem do metrô, para completar-lhe "a renda". Vítima complacente, mas prudente.
Coisa de uma sociedade edificada sobre o princípio do tributo e da servidão nele disfarçada: temos que pagar para viver e sobreviver. A prática do arrastão vem de longe, já foi um dia procedimento rotineiro do Estado, nas derramas que nos tempos coloniais confiscavam para o rei o quinto do ouro extraído das catas com o suor do negro cativo, tempos em que quem trabalhava não recebia a não ser o angu da sobrevivência e as chibatadas da disciplina.
Alguns exageram na conivência. Num dos arrastões, vários chamaram a polícia, depois se queixaram de que ela tardara mais de meia hora para comparecer ao local. Uma das pessoas, porém, indicou que a polícia tardara apenas 17 minutos para atender a ocorrência. Fato acontecido na tarde do almoço, só alguns foram à delegacia fazer a ocorrência e somente o fizeram à noite. Grande número de vítimas nem sequer faz a ocorrência, o que protege os bandidos e atrapalha a polícia. Cultura da cumplicidade na omissão anticidadã de que a vida é assim mesmo.
Muitos exibem seus ouros praticamente pedindo para ser assaltados. Mesmo quem se cuida, menos por precaução do que por falta de meios, não está mais protegido do que os incautos. Há alguns anos houve curioso assalto no bairro do Bixiga. Duas irmãs moravam sozinhas num daqueles nostálgicos casarões antigos, antigas também elas. Todas as manhãs, uma delas punha-se no seu melhor traje, enfeitava-se com suas joias de fantasia, não para ir à missa, mas para ir à padaria comprar o pão nosso de cada dia e o leite do café da manhã. Um dia, um jovem bem vestido aproximou-se, puxou conversa e num empurrão roubou-lhe o colar. Refeita do susto, a boa senhora antiga, na manhã seguinte, repetiu a rotina de tantos anos para o mesmo trajeto até a mesmíssima padaria. Um jovem se aproximou, como se estivesse indo na mesma direção, puxou conversa como se fosse um vizinho e perguntou-lhe se era ela a pessoa que tinha sido assaltada no dia anterior. Ela disse que sim. Levou um safanão, foi atirada violentamente ao chão e ainda ouviu a reprimenda: "Isso é para você aprender a não usar joias falsas!" Nem se reconheceram à primeira vista. Como acontece com a imensa maioria das pessoas na rua, desligaram o registro da memória, traço próprio da cultura urbana moderna, organizada sobre a premissa do estranho e do estranhamento até de quem estranho não é ou não deveria ser. As pessoas se veem todos os dias no ônibus, no trem, no metrô e não se conhecem nem se reconhecem, ensimesmadas no transitório da rua. Em todas as partes, a rua é o lugar da solidão urbana.
A diversificação e a multiplicação dos arrastões nas grandes cidades brasileiras têm estrutura e dinâmica de guerrilha urbana: violência errática, aparentemente sem regras, tira vantagem dessa cultura da distração, da desatenção, própria do lazer e do estar à vontade, como quando estamos em casa. O conjunto já imenso de ocorrências mostra que os momentos aparentemente desestruturados desses espaços têm contrapartida eficiente na delinquência estruturada. Os participantes dos arrastões são muito jovens, alguns deles menores de idade. Os filmes das câmeras de vigilância os mostram como se fossem rapazes a caminho de uma partida de futebol, mas que no meio do trajeto decidem fazer uma pescaria. Há evidente diferença quando se compara arrastões juvenis em restaurantes e arrastões de profissionais em prédios de apartamento. Tudo sugere que os arrastões de restaurantes são o vestibular do crime, a escola, o treinamento. Os que passarem já estarão diplomados para o segundo tipo de ação e outras mais. Crime também tem escola, já é evidente.
José de Souza Martins é Professor Emérito da Universidade de São Paulo e autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto) FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS
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