A realização da conferência “Rio+20” foi uma mobilização internacional de extraordinária importância porque colocou em nível mais elevado o debate dos problemas ambientais no Brasil e no mundo.
São visíveis as falhas nos documentos aprovados. Agora o que importa é analisar as causas das insuficiências que impedem — aqui e no mundo — uma tomada de posição mais radical do movimento em defesa da natureza. Entendo que nas raízes desses equívocos há um dado básico: somente se aponta a existência de uma crise ambiental, quando o que sucede é uma crise na civilização, conforme foi assinalado no texto do cientista Mauro Victor, publicado nesta revista, na edição anterior.
Disso decorrem as insuficiências das medidas sugeridas para uma alteração substancial nos procedimentos para se enfrentar problemas como o aumento do aquecimento do clima, a diminuição da biodiversidade, a poluição da atmosfera e dos oceanos, o incremento da desertificação dos solos e outros males profundos que ameaçam a sobrevivência da sociedade humana.
Para aprofundarmos essa questão é indispensável examinarmos um detalhe significativo ocorrido na antevéspera da “Rio+20”.
Como é sabido, o governo brasileiro há diversos meses manifestou sua preocupação com esse encontro internacional. Várias medidas foram tomadas, inclusive resolver com antecedência as controvérsias em torno do Código Florestal, para evitar a repercussão negativa de uma lei que desmoraliza o governo diante de dezenas de representações na “Rio+20”. Também muitas providências foram tomadas para a recepção e a hospedagem de chefes de Estado e de centenas de representantes das ONGs, assim como a montagem de locais apropriados para as reuniões e encontros.
Todavia, nessa fase dos preparativos ocorreu um fato de suma importância. Pressionada pela estagnação de nossa economia, em maio, a presidente Dilma Rousseff determinou uma diminuição do imposto que incide sobre os automóveis produzidos no Brasil. Assim, na antevéspera da “Rio+20” o governo brasileiro tomou uma medida para estimular o uso de veículos que somente são utilizados por pessoas com maiores posses, enquanto diversas medidas efetivas não são adotadas para melhorar o transporte coletivo e meios de transporte que não criem problemas nas grandes cidades e não poluam o meio ambiente.
Essa medida insólita do governo brasileiro deriva do extraordinário poder econômico e financeiro das indústrias montadoras de automóveis. Empresas estrangeiras que se apoiam no fato de empregar poucos milhares de operários, além de pessoas que giram em torno disso, como os que vendem combustível e peças e cuidam da propaganda desse produto. Enfim, um segmento que impõe um modo de vida — o uso abusivo de automóveis particulares, que poluem a atmosfera e outros problemas insolúveis nas grande cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, gerando deformações terríveis no habitat urbano, pois demandam ruas e estradas para a circulação e estacionamento desses veículos.
É certo também que o uso de um automóvel particular é um conforto e facilita a vida de seus possuidores, e uma passiva propaganda incutiu de forma profunda esse recurso, ao ponto de alguns autores chegarem a dizer: “vivemos o século do automóvel”. Mas trata-se de uma monstruosidade em nosso meio de vida, em favor de um setor industrial poderoso, que somente beneficia uma parcela reduzida da população. Setor que comanda também os planos e a política dos governos e que controla os meios de comunicação.
Por isso, diante das criticas surgidas em nosso país a uma medida governamental que contraria profundamente os esforços para defendermos a natureza, Izabel Teixeira, ministra do Meio Ambiente, saiu em campo em defesa dessa diminuição de imposto, alegando que não afeta a defesa do meio ambiente. Ora, afrontando a inteligência dos brasileiros, essa afirmação contraria a política de controle de combustíveis fósseis (gasolina e gás) e o clamor contra o congestionamento do trânsito e outros malefícios nas cidades.
Por que o governo brasileiro persiste nessa política profundamente nociva? Na verdade, escamoteia-se que esse modo de vida (seria mais justo dizer: modo de morte) decorre da imensa força da indústria montadora de veículos que usa como argumento a necessidade de garantir empregos para metalúrgicos e para impulsionar o famoso PIB, diante da estagnação da economia.
Ora, esse argumento não pode ser aceito e aqui podemos fazer um paralelo. Há uma generalizada pressão no sentido de ser coibido o tráfico de drogas e ninguém tem a coragem de defender esse tráfico alegando que dá emprego a um número considerável de pessoas.
No entanto, por qual razão não se pleiteiam medidas que, pelo menos, combatam a contínua expansão do uso de automóveis particulares? Essa é a pergunta que o bom senso reclama das pessoas.
Ao clamarmos por medidas contra o uso abusivo de automóveis particulares, julgamos indispensáveis duas medidas preliminares. Primeiro, a óbvia necessidade de melhorar o transporte coletivo, acompanhada de outras providências. (Trata-se não somente de ampliar o sistema de metrô e de ônibus.)
Em segundo lugar, impõe-se um exame acurado da problemática de cada cidade, estimulando-se a adoção de diversas providências para diminuir as distâncias entre os locais de trabalho dos locais de moradia, introduzindo essa exigência na política urbana. Ao lado disso, cabe estimular a multiplicação do uso de bicicletas e a introdução de pequenas medidas que permitam uma diminuição do uso de automóveis particulares. (Exemplo: pedágio nas ruas movimentadas de veículos usados somente por uma única pessoa.)
Sabe-se, por exemplo, que são úteis algumas medidas paliativas introduzidas em São Paulo. (Por exemplo, as faixas nas vias públicas destinadas tão somente ao transporte coletivo e aos táxis transportando passageiros eventuais.) Ao lado disso, é impositivo forçar as montadoras a modificarem a estrutura dos veículos, a fim de diminuir o consumo de combustíveis fósseis (gasolina, diesel ou gás) e ampliarem os carros movidos a eletricidade.
Enfim o que se coloca é uma mudança no modo de vida, partindo de um sentimento generalizado de que se vive melhor nas pequenas cidades do que nas metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, etc.
Ao mesmo tempo devemos equacionar o crescimento do número de empregos, compensando o fim dos benefícios concedidos às indústrias montadoras de automóveis. Esse é um problema que deve ser equacionado por especialistas, buscando-se, como exemplo, a introdução de um novo perfil em todos setores — indústria, comércio, agricultura e serviços.
Portanto, tudo isso reclama um amplo debate, objetivando-se uma alteração nesse modo de vida que somente se efetivará se for adotada com paciência e perseverança, pois jamais será implantada da noite para o dia.
É provável que alguns considerem tudo isso uma vã utopia. Mas dezenas de milhões de pessoas mudaram o modo de vida quando isso se tornou imprescindível. Não foi o que sucedeu na segunda guerra mundial nos países da Europa ocupada? E foi assim, porque houve uma dramática situação.
Então, face a um quadro aterrador que se delineia para a vida de nossos descendentes, não podemos fugir do dilema: vencer essa crise na civilização humana, ou, no seu conjunto, ela embarcará na nau dos insensatos.
São Paulo, junho de 2012.
Marco Antonio Tavares Coelho, ex-deputado federal do antigo PCB, escreveu, entre outros livros, A herança de um sonho.
FONTE: GRAMSCI E O BRASIL.
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