Dois intelectuais do século 20, o brasileiro José Guilherme Merquior e o inglês Michael Oakeshott, falam da agonia da imaginação liberal entre nós
Martim Vasques da Cunha | O Estado de S. Paulo /Aliás
A data 28 de outubro de 2018 ficará conhecida na história do Brasil como o dia da morte da “imaginação liberal” e o da ressurreição da ambiguidade na nossa atividade política. Segundo Lionel Trilling, em um estupendo livro de mesmo título, este tipo de imaginação consiste em limitar “sua visão do mundo àquilo com que pode lidar, e também inconscientemente tende a desenvolver teorias e princípios que justifiquem suas limitações, em particular em relação à natureza humana”, numa “negação das emoções” que tenta simplificar e organizar o fato de que “o mundo é um lugar complexo, inesperado e terrível”, impossível de ser “sempre entendido pela mente humana da mesma maneira que ela é usada em nossas tarefas cotidianas”.
Já o retorno da ambiguidade é próprio de qualquer atividade política – em especial, a de governar. Esta era a principal preocupação do filósofo inglês Michael Oakeshott ao escrever em meados de 1951, A Política da Fé e a Política do Ceticismo, que finalmente chega às livrarias brasileiras, justamente no momento no qual mais precisamos dela.
Publicado logo após a sua morte, em 1990, o livro recupera o que deveria ser óbvio a qualquer um que faça uma análise política criteriosa – o fato de que o ato de governar só existe em função de uma ambivalência de vocabulário que torna o mundo político complexo e impossível de ser reduzido nos esquemas mentais da “imaginação liberal”. Aliás, esta tensão na linguagem já acontece no fundamento teórico deste pequeno tratado, no qual a política da fé não envolve a crença em quaisquer aspectos religiosos ou transcendentes, mas lida com a fé na perfeição racional de que um governo pode alcançar o bem comum por meios exclusivamente técnicos, enquanto a política do ceticismo não tem nada a ver com a suspeita ontológica de pós-modernos como Foucault ou Derrida – e sim com a desconfiança a qualquer poder político centralizado que impeça a liberdade individual.
No fundo, são princípios que guiam a nossa política ocidental – especialmente, a europeia – e que jamais lidam com a natureza do que é o ser humano, mas sobre a conduta humana. Apesar de serem descritos como extremos e opostos, na verdade os polos da política da fé e do ceticismo estão misturados nas circunstâncias concretas e até podem ser analisados como parceiros. Ou seja: qualquer político, ao se caracterizar como oposição, usa a política do ceticismo para confrontar o governo que usa a da fé. Porém, se eleito, provavelmente não terá outra solução para praticar suas promessas de campanha, exceto se for aproveitar das técnicas que antes evitava como o diabo a fugir da cruz.
Esta ambivalência é justamente o que escapa ao brasileiro José Guilherme Merquior na sua análise de uma das variações da política da fé que possuiu a maioria da intelligentsia nacional nos últimos 30 anos – descrita em O Marxismo Ocidental com precisão bibliográfica e clareza estilística, mas com o nítido sabor de que a “imaginação liberal” que sempre o acompanhou em sua obra o fez ficar com um ranço de naftalina. Infelizmente, isto ocorre por dois motivos. O primeiro é que Merquior não consegue perceber que o problema com o “marxismo ocidental” – aquela linha de pensamento que vai de Georg Lukács a Jürgen Habermas, passando pelos melhores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer – não é apenas o fato de ser “um irracionalismo” ou basear-se em “uma visão humanista do conhecimento” que deturpa qualquer tipo de perspectiva metafísica, mas principalmente porque se trata de uma “sedução diabólica”, uma verdadeira revolta contra a própria estrutura da realidade a qual, se não for controlada, termina em uma implacável autodestruição.
O segundo motivo é que, para Merquior, a solução que impediria o “marxismo ocidental” de ser uma “forma suave de contracultura institucional” seria uma recuperação da razão iluminista do século 18 – por coincidência, uma das formas da política da fé dissecadas por Oakeshott. É justamente a falta de percepção dessa parceria inusitada – entre o amor involuntário pela perfeição técnica na atividade do governo e uma oposição a qual compreenda adequadamente a imperfeição inerente aos assuntos humanos – que prejudica a análise do ensaísta carioca. Ao defender um racionalismo que não possui os meios adequados para combater a “rebelião” metafísica provocada pelos escritos de Hegel e Marx, Merquior mostra uma terrível impotência concreta que, por sua vez, é a característica principal de quem ainda se guia pela bússola da “imaginação liberal”.
O impasse do talentoso diplomata também comprova aquilo que Oakeshott classificou como as “nêmesis” das políticas da fé e do ceticismo. Sem dúvida, em contraposição às críticas feitas contra o “marxismo ocidental”, Merquior pode ser visto como partidário do último polo. Contudo, a sombra que atinge o ceticismo na política também ataca o autor de O Liberalismo – Antigo e Moderno porque ele também se envolve no quietismo político que paralisa por completo o opositor à política da fé – da mesma forma que esta última tem a sua contrapartida quando finalmente se revela no desejo de poder alucinado que pensa controlar, em minúcias, todas as instâncias da vida pública e privada.
Nessa tensão insuportável em termos práticos, Oakeshott propõe, entretanto, um desenlace típico de seu mestre maior – o grande Michel de Montaigne. Por meio do famoso bordão epistemológico – O que sei eu? –, o inglês recupera o campo da prudência aristotélica na figura do “estivador” (trimmer), retirada do clássico The Character of a Trimmer, escrito por Lord Halifax entre 1685 e 1688, e que teria um papel importantíssimo na condução da nau insensata do governo ao calibrar, de forma harmoniosa, o peso de cada compartimento da embarcação naval, sem a ajuda de manuais ou instrumentos técnicos, apenas com auxílio da intuição e da experiência concreta.
Como bem descreveu Daniel Marchioni, no excelente posfácio do livro de Oakeshott, o mais impressionante no uso dessa metáfora é o detalhe de que, para o filósofo inglês, a solução do dilema político ocidental não está nas mãos dos estadistas ou dos intelectuais que os aconselham – algo comum para quem ainda vive segundo a “imaginação liberal” –, e sim na “profissão mais humilde na hierarquia portuária, normalmente desempenhada por trabalhadores com menor nível de instrução formal”. Aqui, “a política estivadora procura cultivar a prudência e a moderação. Ela se vale do conhecimento prático não com a intenção de chegar com mais rapidez ao destino, mas com o intuito de manter o barco navegando com segurança durante todo o percurso. Talvez a imagem mais bela dessa metáfora seja a de que o destino de todos acaba recaindo nas mãos do mais singelo dos tripulantes, provando que a virtude da política reside na experiência e no comedimento”.
Foi o que se viu no último dia 28 de outubro de 2018 quando a sociedade civil brasileira recuperou a ambiguidade da atividade política ao afirmar que é ela, no papel do estivador, quem comanda as ações do capitão do navio ou os devaneios dos pilotos que brincam de intelectuais de gabinete, com suas pretensões de controlarem o veículo. Pouco importa o que aconteça no futuro da nossa cultura, mesmo com o lento desaparecimento do “marxismo ocidental”, conforme a expectativa dos atuais céticos, chegará a hora em que a política da fé, como sempre, cumprirá o seu papel efetivo para que uma administração faça o que tem de ser feito – a saber: governar para o bem comum. Enquanto isso, o estivador deve continuar atento ao peso da embarcação, de preferência lendo atentamente esses dois testamentos traídos da “imaginação liberal”. Espera-se assim que a morte dela neste país não seja mais um motivo para o ressurgimento da “nêmesis” da política da fé que, se não for vigiada pela prudência do ceticismo, nos destruirá para sempre.
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✽É autor de ‘Crise e utopia – o dilema de Thomas More’ e ‘A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira’
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