domingo, 2 de dezembro de 2018

Bernardo Mello Franco: O presidente no zoológico

- O Globo

Bolsonaro comparou os índios a animais no zoo. Em Brasília, vai enfrentar a primeira deputada indígena. ‘Ele tem que parar de falar coisas erradas’, diz Joênia Wapichana

É exótica a fauna que habitará o Planalto a partir de 2019. O governo de Jair Bolsonaro vai reunir pavões, gorilas e outros bichos. Aos olhos do presidente eleito, os animais são os outros. Na sexta-feira, ele comparou os índios que vivem em reservas a feras no zoológico.

“Na Bolívia, tem um índio que é presidente. Por que no Brasil devemos mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológicos?”, provocou o capitão.

Bolsonaro não chega a repetir Manuel da Nóbrega. No século XVI, o padre dizia que “índios são cães em se comerem e matarem e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem”.

As palavras são outras, mas a visão parece a mesma. Para o presidente eleito, o índio é comparável a um animal. Se quiser ser “um ser humano igual a nós”, tem que abandonar seu território e migrar para a periferia das cidades. O discurso soa como música para ruralistas, grileiros e mineradores, todos ansiosos para explorar as terras protegidas.

Bolsonaro não esconde o que pretende. “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”, disse, no mês passado. A ameaça tem alvo certo. Segundo a Funai, o país tem 130 territórios em processo de demarcação. Outros 115 estão em estudo.

“Índios não estão em reservas, muito menos em zoológicos. Índios vivem em territórios próprios, que são garantidos pela Constituição”, esclarece o antropólogo Mércio Gomes, professor da UFRJ e ex-presidente da Funai.

Ele diz que o capitão deveria se inspirar no marechal Cândido Rondon, que criou o Serviço de Proteção ao Índio e chegou a ser indicado ao prêmio Nobel da Paz pelo físico Albert Einstein. “Nem a ditadura revogou terras indígenas. Apelar ao exemplo de Rondon é apelar às melhores tradições do Exército”, afirma.

O discurso de Bolsonaro preocupa a advogada Joênia Wapichana. Em 2008, ela foi à tribuna do STF defender a demarcação da Raposa Serra do Sol. Dez anos depois, tornou-se a primeira mulher indígena a ser eleita deputada.

“A demarcação das terras e a proteção dos povos indígenas estão amparadas na Constituição. São deveres do Estado, não dependem da vontade de nenhum governo”, afirma a parlamentar, eleita pela Rede em Roraima.

A Carta de 1988 determinou que as demarcações fossem concluídas em cinco anos, mas o processo já se arrasta há três décadas. “Está mais do que atrasado”, constata a deputada.

Na sexta, o presidente eleito insistiu na tese de que as terras indígenas poderiam se separar do Brasil. “Não pode usar a situação do índio para demarcar essa enormidade de terras que poderão ser novos países no futuro”, disse.

“Esta é uma questão ultrapassada. O Supremo já deixou claro que as terras indígenas pertencem à União”, rebate Wapichana. “Os índios são cidadãos brasileiros. Nossa luta é pelo respeito e pelos direitos que estão na lei”.

A deputada lembra que Bolsonaro já se desculpou com a presidente do Tribunal Superior Eleitoral por suas “caneladas”, um eufemismo para as notícias falsas que questionavam as urnas eletrônicas. “Agora ele tem que parar de falar coisas erradas sobre os índios. É bom pensar um pouco para não ter que pedir desculpas depois”, conclui.

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