Ativista e jornalista judia assassinada há cem anos na Alemanha se tornou ícone da esquerda
Silvia Bittencourt | Folha de S. Paulo
BERLIM - O tiro que em 15 de janeiro de 1919 matou a ativista socialista Rosa Luxemburgo aos 47 anos —e a torna ícone da esquerda alemã— ainda se faz ouvir cem anos depois.
Com a crise dos grandes partidos e a ascensão da extrema-direita no país, mais historiadores veem conexão entre o momento atual e o assassinato da jornalista judia poucas semanas após ela deixar a prisão, onde passara três anos por causa de seus artigos e discursos que mobilizavam a massa contra adversários.
“Rosa vermelha” nasceu na Polônia e mancava devido a uma doença no quadril. Agitou os quadros da social-democracia alemã no começo do século 20 e rompeu com ela por discordar do apoio à Primeira Guerra (1914-18). Até hoje, milhares visitam todo ano seu túmulo no cemitério de Friedrichsfelde, em Berlim.
Seu assassinato, assim como o do correligionário Karl Liebknecht minutos antes, foi um ápice da revolução alemã, cujo centenário o país relembra desde novembro passado.
Em Berlim, centro do movimento, debates, filmes e exposições reconstroem aquelas semanas caóticas de perseguições políticas, fuzilamentos e —já então— fake news.
A revolução pôs fim à Alemanha Imperial e inaugurou a República de Weimar (1919-33), primeira experiência democrática do país. Mas o período, marcado por grandes crises econômicas e políticas, também seria uma das fases mais instáveis da história alemã, possibilitando o surgimento do Partido Nazista de Adolf Hitler (1889-1945).
“Também hoje há grupos que tentam dominar as ruas, ameaçam adversários com violência política e os chamam de traidores da pátria”, diz o historiador irlandês Mark Jones, autor de “Founding Weimar” (Fundando Weimar, sem edição no Brasil), estudo detalhado sobre a violência na revolução. “Ali surgiu a nova cultura da violência, e não só com os nazistas 13 anos depois.”
A revolução eclodiu em novembro de 1918. O país estava devastado pela guerra, e Berlim assistia a uma disputa acirrada pelo poder.
De um lado, os sociais-democratas, no comando de um governo provisório, almejavam um parlamentarismo democrático. Do outro, socialistas e comunistas, dissidentes, buscavam a revolução nas ruas e tinham Luxemburgo e Liebknecht como líderes.
Estes lutavam, a princípio, por um socialismo democrático. Mas foram vencidos por seus correligionários radicais —favoráveis à ditadura proletária nos moldes russos— e atuaram nos levantes. Em 1º de janeiro de 1919, surgiu o Partido Comunista alemão.
Se a queda do imperador Guilherme 2º, em novembro, ocorrera de forma pacífica, as semanas seguintes trariam agitação. Enquanto os rebeldes promoviam protestos e paralisações, boatos corriam Berlim, inflamando medos.
Jones cita um massacre atribuído aos revolucionários no bairro de Lichtenberg, que nunca ocorreu, e a lenda de um exército secreto financiado pelos russos. “Isso nos leva ao discurso atual: mentir calculadamente para atingir objetivos políticos”, diz.
Para ele, reconhecer o papel das fake news na época ajudaria a lidar hoje com o partido ultranacionalista Alternativa para a Alemanha (AfD), que ganha força nas urnas.
Frente à ameaça vermelha, os governantes social-democratas moderados não hesitaram em recrutar unidades paramilitares nacionalistas formadas por ex-soldados.
Também apoiaram o comandante Gustav Noske, um social-democrata, na ordem para disparar contra qualquer suspeito, e permitiram a distribuição de cartazes instigando a caça aos comunistas.
“Matem-no!”, diziam panfletos com a foto de Liebknecht.
Cerca de 200 pessoas morreram no chamado Levante de Janeiro, que entre 5 e 12 daquele mês transformou Berlim num campo de batalha e acabou abafado pelas tropas governistas. Em março, durante uma greve geral, seriam 1.200 as vítimas, inclusive mulheres e crianças.
O ódio originado nos massacres cimentaria a divisão da esquerda alemã entre sociais-democratas e comunistas, ajudando a ascensão de Hitler.
Ainda pouco conhecida, a violência contra mulheres proletárias na época também foi inédita. Por isso, Jones critica o fato de a Alemanha ressaltar os aspectos positivos da revolução, como a introdução dos direitos fundamentais. “É mais cômodo falar do direito ao voto feminino do que dos assassinatos de mulheres.”
Luxemburgo e Liebknecht foram capturados e mortos na noite de 15 de janeiro. Liebknecht foi fuzilado pelas costas, num parque. Luxemburgo estava em um carro quando tomou um tiro na cabeça. O corpo, jogado num canal, foi achado quatro meses depois.
No livro “Eine Leiche im Landwehrkanal” (Um Corpo no Canal Landwehr), o cientista social e cineasta Klaus Gietinger reconstruiu os crimes depois de 30 anos de pesquisa.
Ninguém jamais foi responsabilizado pelas mortes. Mesmo a imprensa liberal reproduziu a versão oficial, segundo a qual Liebknecht teria sido morto ao tentar fugir e Luxemburgo, linchada por uma multidão. “Os jornais imprimiram as mentiras que os militares espalharam”, diz o autor.
Nas décadas seguintes, a investigação seria tomada por um emaranhado de versões.
Gietinger afirma que Luxemburgo e Liebknecht foram executados por ordem de um importante oficial chamado Waldemar Pabst, com o consentimento do comandante social-democrata Noske.
Hoje, muitos historiadores reivindicam um pedido oficial de desculpas do Partido Social-Democrata (SPD).
A agremiação, porém, parece ainda temer os fantasmas da revolução. Em nota neste mês, diz não haver prova definitiva do envolvimento de antigos correligionários nos crimes.
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