Valor Econômico
O Bolsa Família é uma forma pragmática de
garantir renda para os mais pobres, em um país com alta informalidade
No meu artigo anterior (“Por que as pessoas
seguem na pobreza?”), aqui no Valor,
discuti razões pelas quais indivíduos permanecem em situação de extrema pobreza
e em atividades de baixíssimo rendimento. Apresentei evidências sobre como um
programa de distribuição de ativos em Bangladesh teve efeitos positivos e
permanentes sobre o tipo de ocupação, trabalho e renda das famílias
beneficiadas.
Portanto, não só políticas de capital
humano são efetivas para combater a pobreza de curto e longo prazos; ações
redistributivas podem ter papel relevante.
No presente artigo, discuto o desenho das
políticas de transferência de renda sob a ótica do investimento. Penso que,
nesta questão, o objetivo do gestor público é de transferir eficientemente
recursos para as pessoas que realmente necessitam, minimizando os possíveis
efeitos adversos dessas transferências.
A questão atraiu vários pensadores, inclusive os liberais mais influentes. Milton Friedman, por exemplo, em seu livro “Capitalismo e Liberdade”, dedica o penúltimo capítulo ao problema de combate à pobreza.
Friedman era a favor de uma proposta que
juntasse todos os programas de assistência social, como o seguro-desemprego ou
seguro por invalidez, em apenas um programa de transferência de renda, chamado
de imposto de renda negativo. De acordo com este economista, um valor mínimo de
renda familiar seria definido e famílias ganhando abaixo desse valor receberiam
uma transferência de renda do governo para que essa renda mínima fosse atingida;
enquanto aquelas pessoas recebendo acima do valor determinado, pagariam um
imposto sobre a renda.
O programa Bolsa Família, agora chamado
Auxílio Brasil, não tem exatamente o formato pensado por Friedman, mas se pode
dizer que é uma forma pragmática de garantir renda para famílias pobres, em um
país com alta informalidade e forte evasão do imposto de renda. O atual
programa de transferência de renda do Brasil custa aproximadamente 1% do PIB,
com impacto social elevado, beneficiando mais de 17 milhões de famílias.
Recentemente, ganhou força entre os
economistas, a proposta de renda básica universal, na qual o governo faria uma
transferência monetária para todas as pessoas, sem condicionalidades de renda e
situação laboral.
Apesar da simplicidade da proposta, que
poderia eliminar todas as outras formas de assistência e também as deduções de
imposto de renda, que em geral beneficiam os mais ricos, o programa de renda
básica em larga escala é fiscalmente custoso e, por não ser focado nos mais
pobres, beneficia também pessoas que não precisam dos recursos.
Uma crítica comum aos programas de
transferência de renda é que podem reduzir o incentivo ao trabalho, além de não
inserir as pessoas em ocupações produtivas, afetando negativamente o capital
humano de longo prazo.
Dada a sua forma não experimental, é difícil
isolar estatisticamente os efeitos do programa Bolsa Família sobre o trabalho.
Pesquisas que procuraram estimar tal efeito mostraram que não há impacto
negativo sobre a participação no mercado de trabalho ou nas horas trabalhadas;
porém, o programa pode levar mais pessoas a trabalharem na informalidade, já
que com maior renda formal, as pessoas podem deixar de serem elegíveis.
Seria possível ter um desenho alternativo,
que pudesse incentivar o trabalho formal e ao mesmo tempo garantir renda para
que as pessoas possam sair da pobreza? Ou será que os efeitos sobre o trabalho
formal são custos que incorremos com as transferências de renda governamentais
para os mais pobres?
Uma opção é inverter o modelo,
transformando as transferências em investimento público, tanto em
infraestrutura, a exemplo de saneamento, quanto em capital humano. A ideia
central seria empregar os beneficiários em trabalhos focados na construção e
manutenção de bens públicos, na preservação do meio ambiente e outras
atividades produtivas. Os beneficiários poderiam também participar de
treinamentos que pudessem aumentar sua inserção no mercado de trabalho. Pessoas
sem condições físicas e mentais de trabalhar receberiam uma renda mínima sem a
condicionalidade do trabalho, assim como mães com filhos pequenos.
Tais programas são conhecidos
internacionalmente como workfare. Empresas privadas poderiam participar
voluntariamente do programa, no qual o governo pagaria temporariamente parte do
salário dos trabalhadores elegíveis.
Além de incentivar o emprego, um argumento
a favor desse tipo de programa é que o requerimento do trabalho produtivo e/ou
do treinamento, servem como triagem natural, selecionando apenas aqueles que
realmente precisam dos recursos. Esse ponto é relevante na presença da informalidade,
quando as autoridades não observam de fato a renda dos indivíduos. Assim, este
formato desencoraja a informalidade e foca os benefícios para os mais carentes.
Uma outra justificativa aos programas de
workfare é o de evitar a depreciação do capital humano quando as pessoas estão
fora do mercado de trabalho e os problemas psicológicos associados ao
desemprego.
Tais argumentos foram descritos de forma
elegante por Tim Besley e Stephen Cote, em trabalhos publicados nos periódicos
de destaque, American Economic Review e Review of Economic Studies, ainda nos
anos 90.
Na prática, programas de workfare foram
implementados em diversos países, como Cingapura, Estados Unidos e Reino Unido.
Em Cingapura não há um salário mínimo compulsório, porém o governo complementa
a renda dos 20% mais pobres com uma transferência significativa, caso os mesmos
estejam ocupados, com o objetivo de incentivar o emprego. Parte do recurso é na
forma de poupança para a aposentadoria.
Uma crítica aos programas workfare, é a sua
dificuldade de execução. No entanto, qualquer outro programa que viesse a
substituir o sistema de transferência atual, deveria começar de forma
controlada, sendo monitorado, avaliado e sofrendo os ajustes necessários. Cabe
pensar em um formato de programa que represente investimento público em setores
com alto retorno social, a exemplo de saneamento, acoplado à qualificação
profissional, dando dignidade aos participantes e ao mesmo tempo beneficiando a
sociedade como um todo.
*Tiago Cavalcanti,
economista, é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP
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