O Globo
A revolução digital trouxe uma mudança
profunda no ciclo do trabalho, que ficou mais curto com o crescimento de
serviços temporários sem proteção ou sindicalização. Nesse universo, os
serviços de delivery utilizam-se de trabalho quase escravo. O prestador não é
empregado de quem encomenda nem do restaurante para o qual trabalha. Aluga a
moto ou bicicleta que usa, não tem férias nem folga no fim de semana, não tem
plano de saúde e não vai se aposentar.
Na fase inicial, esse novo escravo sentiu-se liberto da estrutura tradicional de trabalho com subordinação e rotina, achando que a mudança seria sua libertação. Sua consciência ainda não se formou, mas sente sinais insistentes de que as coisas não estão saindo como imaginou. Analisei este assunto em detalhe no livro “O cavalo de Troia digital”, que acabo de publicar. O tema passou a ser objeto de discussão dos principais candidatos à Presidência da República, valendo a pena refletir sobre ele.
A grande discussão jurídica é em torno do
Uber, aplicativo de atuação mundial. No Brasil, uma decisão importante foi
proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, entendendo não haver vínculo
empregatício entre motoristas e a dona da plataforma. Na Califórnia, após uma
intensa campanha publicitária patrocinada pelas donas de aplicativos, elas
conseguiram vitória na Justiça por estreita margem. Ainda assim, os eleitores
asseguraram pequenos benefícios aos motoristas, que antes não tinham nenhum.
A decisão judicial refletiu a preocupação
dos usuários californianos de que, com a intervenção estatal, os custos dos
serviços fossem majorados. É compreensível. O usuário está fidelizado e tem
medo de que o serviço fique mais caro. A questão central, entretanto, não é
essa. O problema é que esse trabalhador, sem qualquer proteção hoje, acabará no
futuro próximo tendo que ser suportado economicamente pela sociedade, deseje
ela ou não.
Em 2021, a Suprema Corte britânica decidiu
que os motoristas do Uber no Reino Unido deveriam ter direito a um salário
mínimo e férias remuneradas. Entendeu que os motoristas são trabalhadores e não
autônomos, recusando o argumento do Uber, que insistia ser uma simples agente
de reservas. Para chegar a esse veredicto, a mais alta corte de Justiça
britânica considerou algumas razões. Primeiro, que os condutores não podem
interferir no preço cobrado em cada viagem que é fixado pelo Uber. Segundo, que
oUber define os termos do contrato de trabalho por meio do seu aplicativo.
Terceiro, porque a empresa controla o número de viagens que podem ser
recusadas. Por último, que restringe a quantidade de comunicação entre
motoristas e passageiros, algo que não sofreria restrições se os motoristas
trabalhassem por conta própria.
No Brasil, há decisão recente da 7ª Turma
do TRT do Rio de Janeiro reconhecendo o vínculo empregatício entre o motorista
e o Uber. Dela cabe recurso. De qualquer forma, o problema já está presente na
pauta eleitoral. Pode parecer prematuro examinar questões como esta, mas, como
nos ensinou Einstein, “o futuro sempre nos chega a uma velocidade de 60 minutos
por hora”.
*Advogado, foi ministro da Cultura, governo Itamar Franco
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