O Globo
Em tempos eleitorais, tempos de mudanças
inversas ou reversas, de ajustes de contradições e permanência disfarçada;
tempos nos quais mudamos nomes e inventamos partidos, mas não pensamos nisso
como um costume destinado a não transformar os jeitinhos, os assassinatos de
caráter, as notícias mentirosas, falsas, fantasiosas, caluniosas, criminosas —
enfim, tudo que cabe na noção de fake surge como um sol de verão.
Em tempos eleitorais, falamos de “candidatos” e postulantes. Dos que pretendem ser eleitos numa competição teoricamente igualitária. E tal princípio alheio à vida cotidiana produz uma multidão de discursos conjunturais, transformando-se numa verdadeira “economia política eleitoral”, na qual se produz uma matemática de relações. Uma álgebra que poderá revelar se A vai com X ou Y, e se o partido Z vai com G, T ou K. O campo político eleitoreiro vira uma crônica de Lima Barreto ou um manicômio de Machado de Assis. Nele, só não ficam loucos os pré-candidatos, perdidos numa competição cuja única regra é ganhar porque, conforme sabemos, “em política vale tudo”, até mesmo trair juramentos constitucionais, como é rotineiro em Bolsonaro. Dito isso, vale observar a ferocidade com a qual se tenta, neste jogo sujo, eliminar o “centro” bloqueador eventual de uma infame repetição.
Aliás, hoje, os jornais estão perdendo para
as telas digitais dos iPhones, iMacs e iPods. Esses “eus” em rede que formam
uma selva de ignorância e má-fé, numa mistura de péssimo alvitre entre a carta
anônima e o trote telefônico...
Os argumentos mais complexos — a
civilização sem o professor, o papel ou o livro que lhe dava concretude ou
“peso”, como se dizia no meu tempo —passaram a ser ignorados e a ter que
competir com uma superfície lisa, um vidro no qual algumas linhas ou um filmete
conta uma piada, passa um segredo, uma “informação de cocheira” dada por um
companheiro fanático que se apresenta como guru de uma seita. Com isso, a rede,
em vez de abrir democraticamente os fatos, se fecha na sua ignorância.
Exageros e mentiras passam, entretanto, por
verdade ou falsidade —por fake — e, com tamanha irresponsabilidade, tais
“novidades” engordam ainda mais os polos como espaços exclusivos.
O chamado smartphone — que é telefone,
confessionário, formulador de revolução e de opinião, dicionário, comediante,
cinema pornô, Bíblia Sagrada, teoria política da mais alta e baixa qualidade,
álbum de fotografia das pessoas que mais amamos — é de fato e de direito o
espelho mais perfeito da nossa abominável pobreza e da nossa grata riqueza.
Neste aparelho — que põe no nosso bolso toda a obra de Shakespeare, ao lado do
canto forte de Elis, Ella e Billie; ao lado das sinfonias de Beethoven, das
fugas de Bach, bem como os mapas do mundo — resume-se, repito, o nervo
pós-moderno de nossas vidas.
Ele mostra o mínimo e o máximo, o plano e o
redondo do planeta. Refletindo sobre ele, você entende por que a Terra é
representada, para uma seita, como efetivamente plana, tesa e reta. A rejeição
do esférico e do redondo é afim com a imobilidade e o absolutismo, pois a
esfera, conforme sugere Thomas Mann, tem a “revolução” dela, é o movimento que
irrita os autoritários paralisadores do mundo. Sem a esfera, não há dia e
noite...
Democracias têm um dinamismo esférico,
pois, girando sobre si mesmas, nelas sempre estamos por cima e por baixo. A
esfera é alternadamente celestial e terrena. Não é por mero acaso que o
bolsonarismo, como todo fanatismo lamentavelmente implantado no Brasil, adora a
linha reta das grades de um cárcere.
A possibilidade de arredondamento de um
sistema político achatado, com os superiores em cima e a “massa” e os negros em
baixo, como dizia Anísio Teixeira, equivale a transformar uma pirâmide
aristocrática numa bola democrática. No fundo, toda polarização não só é chata,
mas deseja achatar!
Há um ponto final a ser mencionado. Não sou
contra a digitalização ou as redes. Para mim, o computador, que uso desde 1986,
é um instrumento indispensável. Mas isso não significa que tecnologias da
comunicação não possam ser pervertidas como polos de um absolutismo desvairado,
de negacionismo mútuo. De um brutal fanatismo.
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