AS VÁRIAS FACES DA SANTIAGRAHA
Cláudio Gonçalves Couto
Poucos episódios na conjuntura política recente do país geraram, em tão pouco tempo, uma teia de conflitos tão complexa como aquela que se teceu na esteira das prisões da Operação Satiagraha, da Polícia Federal. Façamos uma sinopse: (1) o presidente do Supremo Tribunal Federal confronta-se com os juízes da primeira instância federal; (2) com os procuradores federais e (3) com o Ministro da Justiça. Por outro lado, recebe o apoio de (4) um expressivo grupo de advogados e (5) do principal partido de oposição, o PSDB. Os grampos autorizados judicialmente realizados pela Polícia Federal comprometeram o (6) chefe de gabinete da Presidência da República em suas conversas com (7) o advogado Luiz Eduardo Greenghalgh (ex-candidato petista à presidência da Câmara dos Deputados), o que motivou a (8) CPI dos Grampos a cogitar a convocação deles, do (9) delegado Protógenes Queiroz, responsável pela operação, e (10) do juiz que deu as duas ordens de prisão depois revogadas pelo Supremo. Toda essa confusão levou o (11) Presidente da República a reunir-se com o Presidente do STF, com vistas a discutir os possíveis abusos que a PF venha cometendo em sua atuação.
Além disto, a suspeição que se lançou sobre Greenhalgh e (novamente ele) (12) José Dirceu levaram-nos a acusar o ministro Tarso Genro de utilizar as ações da Polícia Federal como instrumento de luta política dentro do (13) PT. Como se não fosse suficiente, o delegado Queiroz também se indispôs com grande parte da (14) imprensa (escrita, falada e televisiva) ao insinuar em seu relatório que jornalistas estariam envolvidos com os supostos criminosos por ele investigados. E ainda, entre os órgãos de imprensa, questionou-se a suposta exclusividade que teve a (15) Rede Globo na cobertura das prisões de (16) Daniel Dantas, (17) Naji Nahas e (18) Celso Pitta. Como se não fosse suficiente, levantou-se também suspeição de espionagem sobre a empresa de gerenciamento de riscos (19) Kroll, trabalhando para Daniel Dantas. Por fim, ainda que de forma menos central no imbróglio, poderíamos listar o alegado envolvimento de outros personagens relevantes: (20) o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger e os senadores do DEM, (21) Heráclito Fortes (PI) e (22) Antônio Carlos Magalhães Júnior (BA).
Operação da PF ensejou caso muito complexo
O caso não é complexo apenas pelo número de atores envolvidos, mas pelos questionamentos que suscita: (a) a PF cometeria reiterados abusos de autoridade? (b) O STF estaria atropelando as instâncias judiciais ao revogar decisões de instâncias inferiores sem que estas fossem, antes, apreciadas por instâncias intermediárias? (c) Haveria tráfico de influência no contato de um advogado, correligionário de partido, com o chefe de gabinete da Presidência da República com vistas a obter informações sobre investigações feitas sobre seus clientes? (d) É cabível que um delegado da PF lance acusações sobre jornalistas que entrevistaram supostos criminosos, prestaram-lhes serviços ou opinaram sobre negócios em que eles estão envolvidos? (e) É inadequado o uso de algemas na prisão de supostos criminosos do colarinho-branco, gente de posição social destacada, devendo se restringir a criminosos de outra categoria social?
Se a grande complexidade deste caso torna difícil estabelecer uma análise mais precisa sobre todas as suas possíveis conseqüências - já que são muitos os desdobramentos prováveis que a operação abre -, por outro lado ela parece revelar algumas novidades no funcionamento de nossas instituições. A primeira delas diz respeito a uma saudável (porém não isenta de riscos) autonomia operacional da Polícia Federal. Ora, quando uma polícia subordinada ao Executivo lança uma suspeição pública sobre o próprio chefe de gabinete da Presidência, torna-se difícil afirmar que o órgão age de acordo com as conveniências do poder. É claro, porém, que há um elemento específico neste caso: o delegado Protógenes Queiroz conduziu boa parte de sua investigação à revelia das orientações de seus superiores, envolvendo inclusive a participação da Agência Brasileira de Inteligência (ator nº 23 deste imbróglio), o que não está previsto nas regras de funcionamento nem da PF, nem da Abin. Poderíamos questionar se a investigação teria seguido com a mesma independência caso o delegado atuasse subordinadamente aos superiores como manda o figurino.
A segunda novidade institucional que ganha realce neste episódio é o confronto que se trava, dentro do Judiciário, entre uma tendência à centralização da autoridade nas cortes superiores e a resistência que lhe é oposta pelos juízes das primeiras instâncias, Ministério Público e - mais comumente - os advogados. Ao protestarem contra as atitudes do ministro Gilmar Mendes, os magistrados e procuradores (com a significativa presença do delegado Queiroz) protestam também contra uma tendência centralizadora que ganhou corpo nos últimos tempos, em particular a partir da reforma do Judiciário, que instituiu a súmula vinculante e o Conselho Nacional de Justiça a despeito dos protestos contra ambos provenientes da massa da magistratura. A ação do presidente do Supremo foi um ato de enquadramento das instâncias inferiores, sinalizando-lhes onde reside de fato o poder judicial final. Em suas próprias palavras, o STF "acerta e erra por último".
Neste episódio, ironicamente, a advocacia, que normalmente é simpática à manutenção de uma estrutura mais descentralizada de decisão judicial, optou por defender o posicionamento tomado no centro - apontando-o como uma salvaguarda de direitos individuais por meio da concessão do habeas corpus. As críticas que a advocacia tem feito, por exemplo, à simplificação dos processos penais, reduzindo a possibilidade de recursos, vão em sentido contrário a isto, pois apostam na dispersão das decisões judiciais como forma de - alegadamente - garantir os mesmos direitos individuais. Há, contudo, uma diferença importante: na simplificação do processo, encurta-se o julgamento, facilitando a condenação; nos habeas corpus concedidos pelas instâncias superiores, evitam-se punições antecipadas. Isto mostra que a relação entre centralização judicial e defesa de direitos não é tão simples e direta como se supunha. Este caso deixou isto bem claro.
Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias
Cláudio Gonçalves Couto
Poucos episódios na conjuntura política recente do país geraram, em tão pouco tempo, uma teia de conflitos tão complexa como aquela que se teceu na esteira das prisões da Operação Satiagraha, da Polícia Federal. Façamos uma sinopse: (1) o presidente do Supremo Tribunal Federal confronta-se com os juízes da primeira instância federal; (2) com os procuradores federais e (3) com o Ministro da Justiça. Por outro lado, recebe o apoio de (4) um expressivo grupo de advogados e (5) do principal partido de oposição, o PSDB. Os grampos autorizados judicialmente realizados pela Polícia Federal comprometeram o (6) chefe de gabinete da Presidência da República em suas conversas com (7) o advogado Luiz Eduardo Greenghalgh (ex-candidato petista à presidência da Câmara dos Deputados), o que motivou a (8) CPI dos Grampos a cogitar a convocação deles, do (9) delegado Protógenes Queiroz, responsável pela operação, e (10) do juiz que deu as duas ordens de prisão depois revogadas pelo Supremo. Toda essa confusão levou o (11) Presidente da República a reunir-se com o Presidente do STF, com vistas a discutir os possíveis abusos que a PF venha cometendo em sua atuação.
Além disto, a suspeição que se lançou sobre Greenhalgh e (novamente ele) (12) José Dirceu levaram-nos a acusar o ministro Tarso Genro de utilizar as ações da Polícia Federal como instrumento de luta política dentro do (13) PT. Como se não fosse suficiente, o delegado Queiroz também se indispôs com grande parte da (14) imprensa (escrita, falada e televisiva) ao insinuar em seu relatório que jornalistas estariam envolvidos com os supostos criminosos por ele investigados. E ainda, entre os órgãos de imprensa, questionou-se a suposta exclusividade que teve a (15) Rede Globo na cobertura das prisões de (16) Daniel Dantas, (17) Naji Nahas e (18) Celso Pitta. Como se não fosse suficiente, levantou-se também suspeição de espionagem sobre a empresa de gerenciamento de riscos (19) Kroll, trabalhando para Daniel Dantas. Por fim, ainda que de forma menos central no imbróglio, poderíamos listar o alegado envolvimento de outros personagens relevantes: (20) o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger e os senadores do DEM, (21) Heráclito Fortes (PI) e (22) Antônio Carlos Magalhães Júnior (BA).
Operação da PF ensejou caso muito complexo
O caso não é complexo apenas pelo número de atores envolvidos, mas pelos questionamentos que suscita: (a) a PF cometeria reiterados abusos de autoridade? (b) O STF estaria atropelando as instâncias judiciais ao revogar decisões de instâncias inferiores sem que estas fossem, antes, apreciadas por instâncias intermediárias? (c) Haveria tráfico de influência no contato de um advogado, correligionário de partido, com o chefe de gabinete da Presidência da República com vistas a obter informações sobre investigações feitas sobre seus clientes? (d) É cabível que um delegado da PF lance acusações sobre jornalistas que entrevistaram supostos criminosos, prestaram-lhes serviços ou opinaram sobre negócios em que eles estão envolvidos? (e) É inadequado o uso de algemas na prisão de supostos criminosos do colarinho-branco, gente de posição social destacada, devendo se restringir a criminosos de outra categoria social?
Se a grande complexidade deste caso torna difícil estabelecer uma análise mais precisa sobre todas as suas possíveis conseqüências - já que são muitos os desdobramentos prováveis que a operação abre -, por outro lado ela parece revelar algumas novidades no funcionamento de nossas instituições. A primeira delas diz respeito a uma saudável (porém não isenta de riscos) autonomia operacional da Polícia Federal. Ora, quando uma polícia subordinada ao Executivo lança uma suspeição pública sobre o próprio chefe de gabinete da Presidência, torna-se difícil afirmar que o órgão age de acordo com as conveniências do poder. É claro, porém, que há um elemento específico neste caso: o delegado Protógenes Queiroz conduziu boa parte de sua investigação à revelia das orientações de seus superiores, envolvendo inclusive a participação da Agência Brasileira de Inteligência (ator nº 23 deste imbróglio), o que não está previsto nas regras de funcionamento nem da PF, nem da Abin. Poderíamos questionar se a investigação teria seguido com a mesma independência caso o delegado atuasse subordinadamente aos superiores como manda o figurino.
A segunda novidade institucional que ganha realce neste episódio é o confronto que se trava, dentro do Judiciário, entre uma tendência à centralização da autoridade nas cortes superiores e a resistência que lhe é oposta pelos juízes das primeiras instâncias, Ministério Público e - mais comumente - os advogados. Ao protestarem contra as atitudes do ministro Gilmar Mendes, os magistrados e procuradores (com a significativa presença do delegado Queiroz) protestam também contra uma tendência centralizadora que ganhou corpo nos últimos tempos, em particular a partir da reforma do Judiciário, que instituiu a súmula vinculante e o Conselho Nacional de Justiça a despeito dos protestos contra ambos provenientes da massa da magistratura. A ação do presidente do Supremo foi um ato de enquadramento das instâncias inferiores, sinalizando-lhes onde reside de fato o poder judicial final. Em suas próprias palavras, o STF "acerta e erra por último".
Neste episódio, ironicamente, a advocacia, que normalmente é simpática à manutenção de uma estrutura mais descentralizada de decisão judicial, optou por defender o posicionamento tomado no centro - apontando-o como uma salvaguarda de direitos individuais por meio da concessão do habeas corpus. As críticas que a advocacia tem feito, por exemplo, à simplificação dos processos penais, reduzindo a possibilidade de recursos, vão em sentido contrário a isto, pois apostam na dispersão das decisões judiciais como forma de - alegadamente - garantir os mesmos direitos individuais. Há, contudo, uma diferença importante: na simplificação do processo, encurta-se o julgamento, facilitando a condenação; nos habeas corpus concedidos pelas instâncias superiores, evitam-se punições antecipadas. Isto mostra que a relação entre centralização judicial e defesa de direitos não é tão simples e direta como se supunha. Este caso deixou isto bem claro.
Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias
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