sábado, 16 de agosto de 2025

Argentina sitiada, por Jamil Chade

Carta de relatores da ONU, obtida com exclusividade por CartaCapital, acusa o governo Milei de sufocar protestos e atacar as liberdades fundamentais no país

O governo de Javier Milei tenta sufocar protestos e ataca as liberdades fundamentais na Argentina, com a aprovação de leis que abrem caminho para a implementação de um estado de sítio de fato. A acusação foi apresentada por quase uma dezena de relatores da ONU, que, em uma carta, alertaram o líder de extrema-direita de que suas atitudes violam os padrões internacionais e os compromissos de direitos humanos assumidos pelo Estado argentino.

O documento de 25 páginas, enviado em 12 maio de 2025 e obtido com exclusividade por CartaCapital, revela o desmonte de garantias básicas. De acordo com os relatores, há uma “grave deterioração das liberdades fundamentais e do espaço cívico na Argentina desde dezembro de 2023 até o momento, incluindo violações à liberdade de expressão, liberdade de reunião pacífica e associação, uso desproporcional da força, de armas menos letais e detenções arbitrárias no contexto de assembleias pacíficas”.

O texto ainda menciona tratamentos cruéis e desumanos no contexto dessas detenções arbitrárias, além de ações que comprometem a independência judicial. A carta é assinada por relatoras como ­Gina Romero, Matthew Gillett, Irene Khan e Mary Lawlor, entre outros.

Um dos alertas diz respeito ao “protocolo antipiquetes”, criado por Milei em 2024, que restringe o direito à liberdade de reunião pacífica. A medida, segundo a ONU, também criminaliza qualquer perturbação do trânsito, permite o uso da força policial mesmo na ausência de uma situação de perigo real, revoga a lei que proibia o uso de pistolas antimotim para o lançamento de cartuchos de gás lacrimogêneo e não estabelece limites para o uso de armas letais e munição de chumbo. A norma ainda autoriza detenções sem mandado judicial e permite a responsabilização de entidades e indivíduos identificados como organizadores dos atos, obrigando-os a arcar com os custos das operações policiais e da limpeza urbana.

Em fevereiro deste ano, foi aprovada a Lei 27.786, conhecida como “Lei Antimáfias”, que autoriza o governo e os Ministérios Públicos a estabelecer zonas de investigação especial, nas quais pessoas podem ser detidas por até 30 dias em casos considerados complexos. Para a ONU, a medida “abre a possibilidade de criação de estados de sítio de fato”.

A repressão não é apenas potencial, mas concreta. Entre janeiro e junho de 2024, ao menos 80 cidadãos teriam sido detidos arbitrariamente, e 665 ficaram feridos em decorrência do uso excessivo da força policial. Pelo menos duas vítimas perderam a visão após serem atingidas por balas de borracha, e 47 jornalistas ficaram feridos durante coberturas de protestos.

O documento ainda denuncia “táticas dissuasivas” do Estado contra movimentos sociais, incluindo operações policiais nas principais vias de acesso à cidade de Buenos Aires, e “detenções preventivas”. Também foram registrados bloqueios de ruas de acesso aos locais de concentração para impedir o avanço das marchas, inclusive com arame farpado.

A carta também alerta para uma “tendência de militarização das operações de segurança interna” e na gestão de mobilizações, assembleias e protestos pacíficos. A dissuasão inclui a presença de agentes encarregados de fazer cumprir a lei portando armas de fogo com carregadores com munição de chumbo. “Recebeu-se informação sobre o uso de gases irritantes disparados diretamente no rosto de pessoas já imobilizadas por agentes da ordem”, apontam os relatores, que denunciam a existência de crianças de menos de 10 anos e idosos entre os feridos.

Os relatores denunciam detenções arbitrárias nas manifestações, incluindo de jornalistas, trabalhadores ambulantes e pessoas em situação de rua.

“Algumas pessoas detidas no âmbito das manifestações teriam sido transferidas para prisões de segurança máxima do Serviço Penitenciário Federal para depois serem libertadas por falta de mérito”, alertam.

Não é tudo. O documento menciona ainda a presença de infiltrados nas manifestações, que teriam cometido atos violentos para provocar a intervenção policial. Se não bastasse, juízes que passaram a limitar as ações das forças federais foram alvo de retaliações.

Nada disso, porém, ocorre por acaso. Os relatores da ONU alertam que Milei avança para desmontar garantias sociais e aprofundar as táticas da extrema-direita no poder. Assim como nos EUA de Donald Trump, constata-se na Argentina de Milei uma ofensiva para criminalizar os movimentos sociais, enfraquecê-los e atacar a democracia. 

Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.

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