A LEI ESPANTALHO
José Arthur Giannotti
DEPOIS DA vigência da lei seca, caiu mais da metade o número de acidentes com veículos motorizados. Os defensores da abstinência comemoram e enaltecem o rigor da lei. Mas um minuto de reflexão bastaria para duvidar dessa relação causal entre a lei e a redução dos acidentes. O bom êxito não resulta sobretudo da repressão policial que pela primeira vez se organiza como tal?
Cabe lembrar que a cidade de São Paulo possuía por volta de 30 bafômetros, quantidade absolutamente ridícula. Em vez de o Estado ser aparelhado, e a população, educada, simplesmente se promulga uma lei que pode funcionar como espantalho e forçar uma mudança cultural mediante malabarismos do legislador.
Mais do que a impossibilidade de tomar dois copos de vinho no jantar e voltar dirigindo para casa, incomoda-me essa pretensão autoritária de mudanças culturais serem obtidas a golpes da legislação. Numa democracia, o legislador pode conformar modos de conduta existentes, mas não lhe cabe inventar uma cultura, em particular uma cultura da abstinência e da repressão desnecessária.
O que se deve punir é o motorista embriagado. Ora, diante da dificuldade de estabelecer o limite entre o motorista normal e o embriagado, já que as pessoas reagem diferentemente à mesma quantidade de álcool ingerido, o legislador simplesmente se ausenta, define um limiar que, na prática, impede a bebida e arma o espetáculo da repressão.
Assim, abre-se o caminho para policiais agirem de modo prepotente e abstêmios puritanos darem margem a seus ressentimentos. A vitória é o fim da festa. Isso se os jovens, a população alvo da lei, não aumentarem o consumo de outras drogas mais nocivas à saúde do que o álcool. Em vez de impor a abstinência, cabe definir o limiar da tolerância. Se outros países adotam com sucesso limiares mais altos, por que o nosso deve levantar a bandeira da pura repressão?
Uma lei seca espetacular cai como uma luva nesse processo de transformação da lei em espetáculo que está ocorrendo no país. Em vez de combater a impunidade apertando a legislação e aparelhando o Estado, a fim de que ele possa reprimir respeitando os direitos humanos, vem sendo armada, em praça pública, a guilhotina da respeitabilidade, a humilhação do investigado.
Essa brincadeira de mau gosto de prender e soltar "celebridades" do mundo financeiro e político desmoraliza tanto o prendedor como o relaxador. Se devemos aplaudir o bom trabalho da Polícia Federal quando investiga crimes de colarinho-branco, não é por isso que devemos tolerar que suas ações se façam à luz dos holofotes. Se devemos esperar dos magistrados que cumpram a lei, não é por isso que vamos nos deliciar com as piruetas dos juízes de primeira ou de última instância.
O que está sendo posto em xeque é respeitabilidade institucional da lei. Interessa ao governo fazer de conta que nunca neste Brasil os corruptos foram tão perseguidos. Interessa à oposição, incapaz de elaborar uma agenda oposicionista, que se tenha a ilusão de que tudo, no final das contas, está conforme à lei. Ambos os lados estão contentes porque nenhum de seus corruptos será pego, a despeito de serem expostos no pelourinho da opinião pública. E que não se meça a impunidade pelo número de processos que resultam em condenação nas instâncias superiores da Justiça, pois ela se abriga antes e depois desse tipo de condenação.
Disso tudo resulta o afrouxamento do poder normativo da lei positiva. Primeiro, cada um a considera valendo mais para os outros que para si próprio. Segundo, seus limites estão sempre em mudança, como as margens arenosas dos rios. Por fim, mais que a lei, importa a celebração da "celebridade", tornar visível a qualquer custo um personagem posando de banqueiro acuado, de policial eficaz, de político injustiçado e até mesmo de legislador incompreendido.
Em vez de a norma regular, amoldar a conduta para que ela se torne coletivamente justa, cada vez mais ela tende a funcionar como espantalho fingindo que afugenta as aves da transgressão.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI , filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor, entre outras obras, de "Certa Herança Marxista".
José Arthur Giannotti
DEPOIS DA vigência da lei seca, caiu mais da metade o número de acidentes com veículos motorizados. Os defensores da abstinência comemoram e enaltecem o rigor da lei. Mas um minuto de reflexão bastaria para duvidar dessa relação causal entre a lei e a redução dos acidentes. O bom êxito não resulta sobretudo da repressão policial que pela primeira vez se organiza como tal?
Cabe lembrar que a cidade de São Paulo possuía por volta de 30 bafômetros, quantidade absolutamente ridícula. Em vez de o Estado ser aparelhado, e a população, educada, simplesmente se promulga uma lei que pode funcionar como espantalho e forçar uma mudança cultural mediante malabarismos do legislador.
Mais do que a impossibilidade de tomar dois copos de vinho no jantar e voltar dirigindo para casa, incomoda-me essa pretensão autoritária de mudanças culturais serem obtidas a golpes da legislação. Numa democracia, o legislador pode conformar modos de conduta existentes, mas não lhe cabe inventar uma cultura, em particular uma cultura da abstinência e da repressão desnecessária.
O que se deve punir é o motorista embriagado. Ora, diante da dificuldade de estabelecer o limite entre o motorista normal e o embriagado, já que as pessoas reagem diferentemente à mesma quantidade de álcool ingerido, o legislador simplesmente se ausenta, define um limiar que, na prática, impede a bebida e arma o espetáculo da repressão.
Assim, abre-se o caminho para policiais agirem de modo prepotente e abstêmios puritanos darem margem a seus ressentimentos. A vitória é o fim da festa. Isso se os jovens, a população alvo da lei, não aumentarem o consumo de outras drogas mais nocivas à saúde do que o álcool. Em vez de impor a abstinência, cabe definir o limiar da tolerância. Se outros países adotam com sucesso limiares mais altos, por que o nosso deve levantar a bandeira da pura repressão?
Uma lei seca espetacular cai como uma luva nesse processo de transformação da lei em espetáculo que está ocorrendo no país. Em vez de combater a impunidade apertando a legislação e aparelhando o Estado, a fim de que ele possa reprimir respeitando os direitos humanos, vem sendo armada, em praça pública, a guilhotina da respeitabilidade, a humilhação do investigado.
Essa brincadeira de mau gosto de prender e soltar "celebridades" do mundo financeiro e político desmoraliza tanto o prendedor como o relaxador. Se devemos aplaudir o bom trabalho da Polícia Federal quando investiga crimes de colarinho-branco, não é por isso que devemos tolerar que suas ações se façam à luz dos holofotes. Se devemos esperar dos magistrados que cumpram a lei, não é por isso que vamos nos deliciar com as piruetas dos juízes de primeira ou de última instância.
O que está sendo posto em xeque é respeitabilidade institucional da lei. Interessa ao governo fazer de conta que nunca neste Brasil os corruptos foram tão perseguidos. Interessa à oposição, incapaz de elaborar uma agenda oposicionista, que se tenha a ilusão de que tudo, no final das contas, está conforme à lei. Ambos os lados estão contentes porque nenhum de seus corruptos será pego, a despeito de serem expostos no pelourinho da opinião pública. E que não se meça a impunidade pelo número de processos que resultam em condenação nas instâncias superiores da Justiça, pois ela se abriga antes e depois desse tipo de condenação.
Disso tudo resulta o afrouxamento do poder normativo da lei positiva. Primeiro, cada um a considera valendo mais para os outros que para si próprio. Segundo, seus limites estão sempre em mudança, como as margens arenosas dos rios. Por fim, mais que a lei, importa a celebração da "celebridade", tornar visível a qualquer custo um personagem posando de banqueiro acuado, de policial eficaz, de político injustiçado e até mesmo de legislador incompreendido.
Em vez de a norma regular, amoldar a conduta para que ela se torne coletivamente justa, cada vez mais ela tende a funcionar como espantalho fingindo que afugenta as aves da transgressão.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI , filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor, entre outras obras, de "Certa Herança Marxista".
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